quinta-feira, 24 de julho de 2014

Passarinheira

Leonardo Lopes

Passarinho piou miúdo na janela do coração. Deslembrei outros soluços enquanto deixava apertar o nó. É uma finura essa dorzinha sem-vergonha! Peito fica esmagado como ave que, descuidada no voo, é abatida. Vi uma assim, em tempos outros: a penugem coberta de sangue seco, a cabeça estropiada, os olhos esbugalhados e um talho que deixava à mostra as vísceras.

O ímpeto foi de dar-lhe justo destino. Mas tive coragem, não. Segui adiante o caminho e como paga, até hoje carrego a sombra daquela inocente morte. Colecionei outras, ao longo do tempo: um cachorro esmagado por um caminhão, um rato provavelmente envenenado e estirado duro na calçada, um gato preto atropelado na frente de casa.

De gente mesmo, as dores são outras. Com exceção de uma, ainda recente. Era esperada, porque reconheço na velhice o caminhar da despedida. Mas assim mesmo doeu. E dói ainda.

Por que mesmo danei a falar da dita? Ah, foi culpa do pássaro. Não daquele que encontrei já sem suspiros, mas do que piou miúdo.  Pois ele não fez justiça às cores do dia: céu azulzinho, sol esparramado e brisa dançarina. Mas tristeza tem lá trato com o que é belo na natureza?

Tem não... Tristeza gosta de coreto vazio. Não tem ouvido pra vento nem olhos pra horizonte. Tristeza é pássaro engaiolado, nascido e criado em cativeiro. Desconhece a arte da leveza e se alguma surpresa guarda é do naipe de fazer-se azul, quando na verdade é cinza.

Esse bendito canto miúdo, tento afastar. Percorro colinas e mais colinas, é só fechar os olhos. E sinto o vento, o calor do sol, a brisa ameaçando levantar a branca saia... Mas um descuido, e záz! Estou na beira de um penhasco.

Lá embaixo há o mar rodeado de pedras. O vai vem intranquilo das ondas invernais. Aguço o ouvido para deixar que o som da rebentação suplante aquele outro. Aquele do qual tentei fugir, traçando colinas.

E conseguiu? Pergunta a menina do vestido azul de bolinhas.

Olho-a do alto de meus desenganos e quase afundo em suas famintas pupilas. “Não terás esta resposta, querida”, quis dizer.

Disse? Não. Fiquei com dó.

2 comentários:

Marilia Kubota disse...

Coração, pássaro traiçoeiro.

Marilia Kubota disse...

alguns ning en são interessantes e estimulam a escrever.