quinta-feira, 16 de abril de 2015

A morte e seu chicote

Robert Doisneau

Não sei do que se passa com os anjos, mas parece que eles gostam de festa. Tal ideia me vem à cabeça em dias como o de hoje, quando junto à chuva recebo a notícia de que mais um conhecido se foi. A morte, sempre tão estúpida, surge, então, a minha frente como um letreiro iluminado.

Vago, sem querer, na infância – quando o pensamento de tornar-me órfã era uma necessidade de experiência. E como se no exercício da ficção fosse possível aprender a domar o vazio, eu fechava os olhos e imaginava a vida sem pai ou mãe. Miúda, miúda dor. O desamparo brotando em lágrimas e, demorasse mais um pouco, em choro convulso. E o que sabia eu da morte? Nada.

“Você será viúva cedo”. A sentença foi dada por uma cartomante, tinha eu, sei lá quantos anos! De fato e de direito, nunca fui viúva. Mas não deixo de pensar nos amores e sonhos que enterrei – não arrisco contabilizá-los porque tenho horror a tumbas! – ou nesta face branca, marcada por profundas olheiras, que me acompanha e vez ou outra sussurra para que eu não esqueça: Já não estou contigo, já não estou contigo.

E o que é a morte diante de tanta presença? Porque o cheiro permanece, acredite. E vem nos visitar nas horas mais distraídas. Então o abismo abre sua enorme boca, vertigem. Desejo de mergulhar no rio do esquecimento, onde não há o cheiro, onde não há a voz, onde não há o calor.

O nada parece ser o chicote da morte. E ela, senhora das sombras, usa-o sem dó ferindo nossas costas, tão carentes de abraços; as mãos, os pés em noites de frio.

É esse chicote que ouço estalar quando o cheiro dela roça minhas narinas. E me transporta, a despeito da dor, para aquela sala de cimento queimado, onde na grande mesa ela servia os pratos com a comida fumegante. E perguntaria com doçura: você quer que eu faça ovos estrelados? Sim, eu gosto de ovos “estrelados” – jamais ousei corrigi-la!

E então, a despeito de ser quinta, me dou conta de que o nada ocupou todo o espaço. E é esta, pelo menos até agora, a única coisa que posso dizer da morte: o mundo fica um pouco menor.



Um comentário:

Warken disse...

Gosto também do estrelado, e gosto de pensar que a perda, a morte, a partida e a dor, são luz, uma estrela a mais.
No texto, no silêncio e no amor.

Beijo com carinho.