quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Ao fim e ao cabo

Judy Garland em "O Mágico de Oz" (1939)

Para ler ouvindo Garland

Os ventos varreram a casa. Levaram não apenas as folhas de amianto, mas o resto de dignidade das vigas de eucalipto não tratado que sustentavam pequenos sonhos e que amanheceram no telhado do vizinho. “Felizmente não quebrou nada aqui”, me diz ao telefone a voz anunciadora dos estragos. Do outro lado da linha, após calcular numa fração de segundos os transtornos que a notícia me trazia, lembrei com resignação e uma pontada de quase alegria que não havia mais alma viva no lugar. Ai, as voltas que a vida dá! Um dia, um lar; no outro, destroços. 

Agora era dar nome à ruína. Ver sob o céu instável o que guardar das memórias. Ou o que restou delas. E de repente, sem que eu tenha tempo de evitar, esta constatação me joga num turbilhão de lembranças mal resolvidas.

Não por acaso me dou conta de que é quase Natal, e uma vez mais ela estará emprestando paredes e enfeites enquanto os filhos remoem à distância o tempo que tudo transforma. O tempo, as escolhas e a inabilidade que às vezes demonstramos em tomar as rédeas de nosso percurso e fazer da pedra dura uma trilha para a mudança necessária. Esperei isso dela, mas acho que foi pedir demais. E quando deixei de esperar, os anos tinham passado rápidos e inclementes, arrancando dela – e por isso, um pouco de nós também – a segurança, o conforto, a família ao redor da árvore.

Dou-lhe a notícia da casa. E já não sei mais se por cansaço ou resignação, ela demonstra pouco interesse em saber dos detalhes: “O importante é que não havia ninguém lá...”. Não me pergunta dos móveis, dos livros, da louça ou das roupas, mas suspira ao pensar nas fotografias de família que preguei na parede do corredor: “Que pena! Você deveria ter arrancado antes”. Cinco minutos e ela não quer mais falar. Talvez queira recolher-se no quarto de hóspedes e chorar sem que ninguém a veja, enquanto refaz o caminho que a leva à infância. Porque é lá que vivem todos os nossos fantasmas.

Ciente disso, emprego o resto de forças que tenho para evitar entrar na mesma estrada e encontrar a menina do vestido azul de bolinhas. Não tenho nada para dizer a ela agora. Tampouco quero ouvir de seus olhos famintos e tristes, as mesmas lamúrias.

Por isso, prego à minha frente a imagem da mulher que me gerou. E tento enxergar nela não mais as ausências, as fraquezas, mas sua fortaleza. Então me dou conta de que veio dela a herança que carrego, este hábito de vagar pelo mundo evitando o apego àquilo que um vento leva ao chão e enterra. É esta sua fortaleza. É esta a minha fortaleza.

Lá fora os passarinhos cantam. Cantam e cantam festejando sei lá o quê!

É domingo, e domingo sempre me traz lembranças melancólicas. Foi num domingo que descobri a tristeza das cartas, o silêncio dos homens, a confusão das palavras, a dormência dos membros, o choro das velas, a ausência, o vazio, o crepúsculo.

Aos domingos eu ensaio a morte. E deixo sangrar a esperança.


2 comentários:

Jalul disse...

Essa tocou fundo. Lembrei dela e das semelhanças entre vocês.
A casa ruiu, mas há estradas para caminhar. E haverá outros abrigos para guardar memórias.
Um carinho especial para ela e um abraço bem apertado em você e nas duas bênção que gerou.

Marilia Kubota disse...

Sintomático ruir a casa em que você e tuas filhas moraram, depois você...descobri que escrever (bem ou mal) é uma fortaleza maior do que sair pelo mundo. aliás, escrever já é sair pelo mundo. beijos