quinta-feira, 30 de novembro de 2017

A nova Pasárgada

Carl Friedrich Philipp von Martius

Nilson Moulin me pergunta pela crônica da última quinta, 23 de novembro. Não a escrevi. E justifico a ele, em uma linha, a razão do silêncio: “Muita merda junta, meu amigo!”.

Penso que a sentença, em atualíssimo português, serve para desmentir a ideia de que sou capaz de ver poesia em todas as pequenas e grandes tragédias do cotidiano – “é o que sugerem seus textos”, disse-me outro amigo escriba.

Não, não tenho essa vocação para Pollyanna. Aliás, nunca consegui passar da orelha do famoso livro infantojuvenil. E se minhas crônicas desmentem a afirmação é porque são frutos de uma lida dura e solitária com o texto: nunca sei se o que escrevo é totalmente verdade, mentira ou invenção, mas dificilmente trata-se apenas da realidade – ainda que dela partam os verbos que encadeiam o pensamento e os adjetivos que buscam dar algum sentido ao que alegra, aperta ou indigna o coração.

Ontem, por exemplo, o gás resolveu acabar na hora do almoço. E justo quando eu ia fritar os ovos! Sim, eu comeria ovos no almoço, e isso bem poderia ter rendido uma crônica sobre a memória afetiva que um prato de ovo frito, com arroz e feijão, é capaz de despertar em um ser humano – não em todos, claro.  

Mas ando cansada. E o desânimo é tanto, que sinto como se fosse uma grande inutilidade buscar poesia enquanto vejo subir a lama e, pior, sabendo que hoje mesmo há quem vá dormir sem ovo, arroz ou feijão no prato.

Quando a vida desanda assim, eu quase sempre silencio. E não é por conformismo ou covardia, como bem pode parecer, mas por receio de destilar vilipêndios – o sangue não é de barata, meus senhores e minhas senhoras – enquanto o espírito é açoitado pelos crimes, vaidades e vilezas alheias.

Meus silêncios, geralmente, trazem à tona a velha indagação: Terei eu lugar no mundo? Esta não é uma pergunta retórica. E todas as vezes que sinto urgência em respondê-la, penso que enquanto o homem não conseguir explodir o planeta, haverá sempre um pedaço de chão desprezado pelos bípedes ‘civilizados’, um lugar para onde levar livros e inquietações.

Falando em bípedes, expressão tão cara ao Nilson, lembro que o escriba e tradutor planeja afastar-se de vez da raça. Em nosso último encontro, ele me falou sobre um pedacinho de terra perdido, se não estou enganada, na região da Serra do Caparaó. Um lugar sem vizinhos próximos, estradas ou energia elétrica (desses que a gente ainda encontra logo ali, na floresta).

Não sei se cheguei a dizer ao parceiro de utopias, mas quando a merda é grande, ponho-me a pensar nesses lugares. E empurrada, quiçá, por um romantismo atávico, vejo-os sempre emergir como uma nova Pasárgada – destituída, obviamente, de reis. 

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