quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

La Vie en Rose


Clay Davidson

Comece ouvindo Piaf

Era verão. E a madrugada espalhava pelos galhos das árvores a ausência triste do vento. Da terra seca subia uma poeira leve, como se as pedras se desmanchassem na impaciência do calor. E foi talvez por esta razão, pela temperatura desconfortavelmente excitante, que me rendi às promessas de invernos e tempestades daqueles olhos de amêndoas – não me dando conta, a não ser com o tempo, dos riscos que dormiam nesse olhar.

Lembro daquela noite como se a pouco eu tivesse subido as escadas e ainda embriagada com o cheiro de hortelã, deixasse cair no chão as sandálias que eu sustentava displicente entre os dedos. Eu me recordo agora, ruborizada, das mãos largas mapeando minhas fraquezas e veleidades. Do hálito quente sussurrando-me palavras ininteligíveis e do riso tolo grudado em minha face.

Desconfio, mas não posso afirmar, que já não havia razão em mim quando fechei a porta deixando lá fora a sombra dele. Daquele homem cujos cabelos cheiravam a hortelã e do qual eu ouvia os passos diminuindo na medida em que ele se afastava e se misturava ao vazio, à bruma onde vivem as histórias do porvir.

Eu bem poderia ter tentado dormir, mas a confusão era tamanha que resolvi buscar na cozinha a garrafa de vinho que abrira na véspera, apanhando também o CD de Piaf. Eu resolvera me deixar impregnar por aquela fragrância que misturava, aos odores ancestrais, uma pitada de inocência ou de frugalidade campestre. E talvez porque tudo era propício – a música, o vinho, a noite quente, o cheiro de hortelã –, lembro de ter fraquejado, sentindo no corpo a tormenta.

Agora sei que naquele momento, surgiu o amor. Porque os amores, veja, são frutos também de nossos desejos. E na maioria das vezes precisam apenas do silêncio ou da música certa para ganhar forma; e da credulidade da alma, para crescerem.

Depois disso, não há como voltar atrás! É que os amores, apesar de inventados, não são como o texto ruim que surge na tela e apagamos, minutos depois, como se nunca o houvéssemos escrito. Não, não. Os amores se assemelham aos personagens de uma história fictícia: ganham vida própria após serem nomeados.

E como podem ser cruéis, os amores... É um equívoco pensar o contrário, sustentar a idéia de que apenas as paixões queimam a carne e o espírito: Ah, essas lembranças!

Sinto, de repente, minha respiração alterada. E levada por um sentimento nostálgico, uma saudade ingênua daquele instante vivido em uma madrugada insone de verão, corro a buscar a música que embalara os primeiros passos do antigo amor. Desse vulto do qual eu guardo a lembrança dos cabelos cheirando a hortelã, as mãos largas, os olhos de amêndoas... Mas serão mesmo assim seus olhos, suas mãos, seus cabelos?

Não posso afirmar que sim. Porque há algo sobre os amores que aprendi ao longo da vida: depois de apagados, impossível contar com a fidelidade da memória.

E termine ao som de Armstrong

2 comentários:

Anônimo disse...

Olá, aqui é Bárbara damas de Macapá- Ap.

A Angela passou seu blog para que eu conhecesse seu belissimo trabalho.É verdade..o coração aquece na leitura.:)


Estou passando o meu blog para que conheças meus traços simples.
http://blogdamas.blogspot.com

" há braços"
B. Damas

Lu Gomes disse...

Que vc não perca nunca a credulidade. Que tua vida seja repleta de silêncios, música e amores. E nos brinde sempre com a tua inspiração.
Parabéns pelo blog.
Bjs.
Lu Gomes