quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Folhas e Ventos


Steven N. Meyers


Ela entrou com uma lufada de vento pela janela do quarto, rodopiou sobre a minha cabeça e caiu ao lado, quase dentro da xícara de café. A folha amarelada e ressequida, com veios imitando transparências, lembrou-me uma figura de mulher. E como se dela fosse preciso saber os segredos, apanhei-a com delicadeza e deixei que meus olhos a descobrissem.

Lá fora a paisagem é luminosa. O verão limpa as nuvens do céu, deixando-o todinho azul. As flores abertas assumem seu colorido e no recorte das montanhas, posso ver a luz dourada do sol iluminando a copa das árvores. Há também o cheiro da chuva recente que molhou a grama, o solo e as raízes, penetrando naquilo que há de mais secreto nas plantas.

E, no entanto, cá está, entre minhas mãos, esta folha. Uma lembrança de vida encerrada, agora, em sua textura tênue de morte; nesse amarelo ocre cujo brilho vem apagando-se, deus sabe, há quanto tempo. Toco-lhe os finos traços como se o fato de percebê-los com os dedos dessem a mim o poder de adivinhar sua genealogia. Mas, que desgraça! Sinto úmidas memórias... E ainda que me soe estranho, cerro os olhos e me deixo levar pela sensação torpe de desnudar a essência alheia.

O gato pula o muro. Depois do susto, resolvo enxotá-lo e ouço mais forte o assobio dos pássaros. Também me distrai o martelar constante da obra vizinha – uma pancada surda e intermitente já quase misturada ao meu cotidiano –, o som da televisão ligada na sala e um ou outro idiota que risca a tranqüilidade da rua com motos envenenadas.

Refeita das interferências do mundo lá fora, volto a observar a folha. E penso, com alguma tristeza, que não houve quem a reivindicasse. Nem mesmo os galhos da árvore vizinha. Ocorre-me, então, guardá-la. Mas a idéia, logo em seguida, me aterroriza. Sinto-me menos humana e desisto da intenção assim que recobro a lucidez, me desfazendo da vontade súbita e assassina de encerrá-la em um livro.

Impulsionada por uma razão nova, corro os olhos por pequenos objetos que acompanham minha existência. Vejo-os tristes, vazios, despidos de qualquer sentido que justifique a permanência. Uma avalanche de sentimentos faz subir aos olhos um rio calmo de lágrimas. Não as contenho nem tampouco consigo explicá-las.

O vento Nordeste faz tremer os vidros da janela e arrasta a folha, agora depositada à mesa. Sinto-me guiada pela natureza, como se esta me sussurrasse ao ouvido: “Olha, vês o segredo desta folha?”.

Ao tocá-la mais uma vez, me dou conta da tristeza, do desamparo, da solidão daquela que, um dia, balançou suave no galho alto de uma árvore. Tudo, então, parece-me claro: percebo a fúria domesticada pelo tempo; as lembranças esmaecidas e uma chama, quase apagada, de esperança – reconhecendo em suas estrias a mulher que ainda não sou, mas que espera por mim no futuro.

E tomada pela súbita consciência da inutilidade das coisas, do vazio de algumas lutas e do desperdício das lágrimas, ficamos as duas, solitárias, imaginando silêncios.

4 comentários:

eduengler disse...

Sublime.
De tom Taoísta.
De novo,
Sublime.

Anônimo disse...

linda descrição do mergulho mais profundo até o cerne de tudo e aí sentir o pulso, a seiva, a luz.

Márcia Corrêa disse...

E ainda que a sua cor se esvaia, ela ainda tem leveza para se deixar levar pelo vento. Bjs!

Márcia Corrêa disse...

"Acorda Maria Bonita, acorda vem fazer o café. O dia já vem raiando...". Ontem foi quinta, tô aqui com os "zoinho" doidinho por uma crônica. Bjs!