quinta-feira, 23 de abril de 2009

Guerra Perdida

Howard Waisman


As goteiras formam uma imagem do inferno para mim. Há nisso, não tenho dúvida, algum resquício da infância, esse lugar atemporal onde gotejam as chuvas e reclamam os trovões. Procuro me agarrar ao presente, mas os assobios do vento, seguido do barulho surdo das gotas arranhando as telhas de zinco, me arrancam da casa: ainda não encerrei o suspiro e já me vejo no antigo quarto.

Estou deitada no colchão. A perna é torta e doem os pés. Os olhos acompanham o movimento ágil de uma osga enquanto os dedos da mão direita tamborilam no piso de madeira. Presto atenção em cada pingo de chuva, como se ao fechar os olhos fosse possível traçar deles, a geografia. Em quantos minutos mais estarão molhando minha perna ou a cabeça? Tenho preguiça de levantar.

Lá fora é festa. Os sapos, e sabe deus quais outros bichos, comemoram em algazarra. O barulho me irrita. Tenho gana de atravessar essa umidade triste, me desfazendo líquida e sem esperança. Mas há os dedos tamborilando no chão – como se fosse esse som, uma forma de me agarrar ao sólido, palpável e inteligível mundo dos homens.

No fundo de alguma prateleira está o gibi novo que ainda não li. Penso que talvez pudesse apanhá-lo, aproveitando para pegar um copo cheio de farinha láctea com açúcar. No entanto, doem os pés, os ossos, a alma – que de tão nova, ainda não sabe dar nome às angústias.

O fio de água escorre pela parede, alcança o chão e se mistura ao pó escuro. Os cupins, claro! O que pensam os cupins dessa chuva? Alegra-me imaginar que estejam aturdidos, porque são uma praga, esses bichos.

Seria uma sina da família? Não tenho certeza a esse respeito, mas uma coisa é certa: toda casa nossa era infestada de cupim. E mesmo àquelas que de início se mostravam livres da presença nefasta, não tardavam a sucumbir à sanha destrutiva do inseto.

Quantos livros, jornais, documentos e anotações viraram, enfim, alimento para os cupins? Esta é uma pergunta que apenas os pais podem responder, afinal, aquela era uma guerra deles. Lembro alguma coisa das armas, venenos diversos e variados, todos com odores fortíssimos, que nos obrigavam a manter distância sagrada do escritório e das prateleiras de livros. E ainda das derrotas pois, na maioria das vezes, os bichos se mostravam resistentes – houve época em que foi preciso trocar o forro, chorando, eu imagino, sobre o pó daquilo que antes era um bem literário.

Pensando nisso, dou uma corrida com os olhos sobre o teto. Há, eu pressinto, um exército de cupins montando campanha sobre as nossas cabeças. Posso ouvi-los à noite, quando a casa silencia e ficamos apenas nós (eu, as lembranças e os insetos), ruminando madrugada afora.

Noite dessas, minha filha mais velha perguntou: “Mãe, tem alguém no forro?”. Segurei o riso e procurei manter a expressão o mais inocente possível. “Não, querida. É claro que não há ninguém, nem nada no forro”.

Tive vontade de dizer-lhe que sim – Havia, é claro, gente no forro! Uma multidão, uma turba furiosa e faminta. Mas talvez por intuir que esta é apenas mais uma guerra perdida, acabei omitindo a verdade.


Um comentário:

Márcia Corrêa disse...

Além de destruidores da história da gente, os cupins são patéticos seguidores do mesmo caminho. E ainda assim, inimigos tão visíveis e óbvios, quase invencíveis. Metáfora de quem em nós?