quinta-feira, 16 de abril de 2009

Sobre árvores e sombras



William Guion


Eu tinha nove anos quando plantei a pequena muda de manga. Foi em um dos muitos domingos de sol de minha meninice, e sob um calor tipicamente amazônico, que se deu o ocorrido. Sei disso não por ter uma memória prodigiosa, mas por guardar a lembrança de que o domingo era o único dia da semana no qual a família podia se reunir para visitar o pedaço de terra onde, mais tarde, seria erguida a casa da qual eu guardaria as mais ternas e dolorosas lembranças.

O terreno, íngreme como os barrancos cortados pelo velho Rio Acre, ficava no coração de um bairro esquecido pela cidade e seus moradores. Era triste, seco e sem vida. De um barro vermelho cuja presença se fazia sentir em dias de sol ou chuva. No primeiro caso, pela nuvem espessa de poeira que pairava insistente no ar; e no segundo, graças à consistência lisa que a terra ganhava ao se misturar com a água, dificultando o simples ato de caminhar.

Mas longe de me entristecer aquele pedaço desnudo de terra tinha, aos meus olhos, o valor de uma folha de papel em branco. Dessas que as crianças vão colorindo ao sabor de suas fantasias, sonhos ou histórias: os domingos ganhavam, então, ares de aventura. Guiados pelas explicações de meu pai – ou seriam também sonhos e não me recordo mais? – víamos surgir a nossa frente o telhado que acompanhava a inclinação do terreno, os quartos, as salas, a cozinha e a varanda suspensa, cercada de árvores que só existiam em nossas imaginações. Não havia ruas calçadas. Este, porém, era um detalhe que minha curiosidade infantil só iria perceber anos mais tarde, quando a família passasse a morar no local.

Como são traiçoeiros os corredores da memória! Pois não era a história da árvore que ia contar? Em qual momento me deixei levar, ingenuamente, por outras lembranças? E por que correr risco, se é tão largo o caminho que me leva à menina de saia amarela, com as mãos sujas, plantando uma árvore?

Pois a vejo agora, e quase consigo tocá-la. Os cabelos finos, castanho claro, emolduram-lhe o rosto pequeno, onde dois olhos silenciosos acompanham o meio sorriso na boca. Seus joelhos tocam a terra na parte mais plana do terreno. “È aqui”, ela diz. E então percebo que fala ao pai, apontando o local escolhido para fincar a muda daquela que seria, anos mais tarde, uma grande e generosa mangueira.

Ah, quanta nostalgia me traz este quadro! Acabo de recordar que além da mangueira, outras árvores foram plantadas naquele domingo: um jambeiro, um abacateiro, um pé de cupuaçu. E que todas atravessaram a infância, adolescência e parte da vida adulta da menina de saia amarela, seus irmãos e amigos vizinhos. “Débora”, ouço-a gritar ao pé de uma das árvores, “Vem brincar comigo”; “Vamos descer pelo telhado?”; “Quem vai se esconder?”.

Do outro lado da rua, de uma janela que se mostrava miúda, na lateral da casa vizinha e em frente a uma goiabeira, adivinho a voz amiga: “Agora não posso, tenho que cuidar do Dermeson”. Percebo, então, a lembrança da menina de saia amarela se misturando às sombras das árvores: como é solitário voltar. Refazer, na memória, o caminho para um mundo que já não existe.

E tomada por uma tristeza que tem o tamanho e o frio da mata, me dou conta de que ao contrário do dito popular, a árvore da infância não guardou minhas pegadas, nem tampouco me salvou do esquecimento. Seus frutos não são mais servidos em minha mesa e em sua sombra não verei crescer minhas filhas – menos ainda os netos, para os quais eu poderia, fosse tudo diferente, um dia dizer: “Esta mangueira fui eu quem plantou”.

6 comentários:

Anônimo disse...

Menina de poucas madeixas, adorei a crônica, por ironia da globalização o tempo tem sido curto para ler suas deliciosas palavras, mas algo me fez ler está manhã de muita chuva por aqui, ler seu ensaio sobre a frondoza mangueira que ainda está lá dando enormes frutos todo o verão guardando segredos de nosso passado. Assim, como o sabor doce daquelas frutas (manga, jaca, ingá, jambo, goiaba, azeitona, biribá, etc...) são suas préteritas e saudosas palavras, delicia vc.. sucessos e felicidades... Dermeson Lima

Lu Gomes disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Lu Gomes disse...

Belíssima crônica, Vássia!! Porém, triste e solitária demais, como fatalmente são algumas lembranças da infância, talvez, simplesmente porque desejamos seguir por esse "caminho para um mundo que já não existe".

Márcia Corrêa disse...

É assim mesmo. Cada um de nós decora as lembranças com os sentimentos que elas deixaram. As árvores podem até servir aos mesmos propósitos, mas a atmosfera que nos enlaça a elas é única e tem o contexto de cada alma que por elas passou.

Anônimo disse...

Esperar toda quinta para ler esses textos maravilhosos? Por que não todo dia?

Dermeson Lima disse...

OLHE SÓ COMO É BOM SUA CRÔNICAS FICAREM ON LINE POR UM LONGO TEMPO.... JÁ TINHA ATÉ ESQUECIDO DO COMENTÁRIO ANTERIOR DE TRÊS ANOS ATRAS... FAZENDO A CONTO LEMBRAR DE UMA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA SABOROSA... DE NOSSAS PERIPÉCIAS TREPADOS NAS ÁRVORES DE SABORES DIVERSOS... E AGORA NOS RESTA O SABOR DA SAUDADE.. AINDA MAIS QUE NÃO TEMOS DISPOSIÇÃO DE TREPAR "EM ÁRVORES"... RSRSR. ABRAÇOS COM GOSTO DE SAUDADES...

DERMESON