quinta-feira, 25 de março de 2010

Quase uma ufanista

Franz Keller (1874)

Cheguei à conclusão de que uma das desvantagens da universidade é que ela pode servir como chancela aos medalhões contemporâneos: o sujeito não leu uma obra, mas é capaz de falar sobre ela com tal intimidade que um leigo chega a acreditar tratar-se de um gênio em formação – ao invés de um leitor ou ouvinte de teses.

Os motivos para esse desencanto? Ah, não vale a pena aborrecê-lo com isso, leitor! Portanto, ainda que o assunto me atraia, não escreverei hoje uma linha a mais sobre ele. Mas como acho deselegante iniciar uma conversa para interrompê-la gratuitamente em seguida, direi que me lembrei do conto de Machado de Assis após ter passado uma das últimas tardes de verão ouvindo o professor de Estética discorrer sobre a definição de Belo defendida por Kant, em A Crítica da Faculdade de Julgar, publicado originalmente em 1790 – para que não haja nenhum mal entendido, antecipo que meu professor não é um leitor de teses. Não, senhor, ele realmente sabe o que fala!

E aí chegamos, enfim, ao tema da crônica de hoje, o conhecimento de causa. Começo informando que não li, ainda, nada de Kant. Nem Hegel – e se for fazer a lista de outros filósofos é possível que a face enrubesça de tal maneira que nem mesmo a distância espaço-temporal será capaz de ocultar.

Mas no fundo não sinto vergonha de constatar minha ignorância. Talvez eu deva isso, em parte, ao fato de ser amazônida: nasci no Pará e me criei no Acre. Em Rio Branco, antigamente, a gente crescia achando que conhecer os rios e as matas não bastava. Não bastava saber do poder das plantas medicinais, da cosmogonia dos povos indígenas, dos mistérios do daime, do kampô, da floresta e seus espíritos invisíveis. Era uma espécie de maldição, sabe? A gente crescia com uma certa vergonha, achando que a realidade e o conhecimento do outro era maior e melhor.

Hoje, felizmente, acho que esse sentimento está mudando. Tanto que quando encontro um conterrâneo em Florianópolis ou outra cidade brasileira, percebo no orgulho das origens caboclas, um tom quase ufanista “Cruzeiro do Sul tem a melhor farinha do mundo”, “açaí de verdade é o do Pará”, “pitú de água doce só o do Amapá” e por aí vai.

Perdoe-me, leitor, a divagação. Eu falava da aula de Filosofia, do conceito de Belo e o tema desta crônica, o conhecimento de causa. Foi graças a este último que a lembrança da terra natal me veio à memória. Porque a natureza, segundo Kant, é o melhor exemplo do Belo. “Claro que Kant estava se referindo aos jardins europeus”, avisou o professor. Explicando, em seguida, que na selva amazônica, o que se vê são feras engolindo feras e plantas engolindo plantas.

Sento na última cadeira de uma fila junto à parede, perto da porta, em uma sala grande de um prédio que fica próximo ao bloco do CCE, na UFSC, onde curso Letras. A disciplina não faz parte do meu curso, portanto, a turma que me cerca é formada por pessoas que ainda não conheço – a maioria alunos de Filosofia. Olho ao redor e todos balançam afirmativamente as cabeças. O professor sorri. Todos sabem do que estão falando.

Minha mão direita treme. Ameaço erguer o braço: o coração acelera, sinto as mãos suando, a pressão cai, os batimentos cardíacos ficam ainda mais fortes, chego a senti-los nas têmporas, e desisto. Aos poucos o corpo vai encontrando algum conforto, ainda que o espírito permaneça inquieto.

São mais 10 minutos de aula. Os alunos saem e me pego indo em direção ao professor. “É um princípio básico da natureza”. “Como?”, ele pergunta. E eu, com a voz trêmula, repito que os animais se alimentarem de outros é um princípio básico da natureza; e digo que se na Amazônia ainda há lugares onde é possível ver essa ferocidade é somente porque o homem ainda não conseguiu alterar de todo o espaço e que os jardins não são exemplos de natureza pura, senão transformada.

Quando dei por mim estava falando que assim como a idealização dos jardins europeus, os brasileiros que não conheciam a Amazônia também costumavam carregar nas tintas ao pintá-la, que a selva não guardava somente feras, que havia beleza nas matas e blá-blá-blá, blá-blá-blá.

O professor ouviu, concordou e disse que costumava exagerar em suas explicações para tornar a aula mais didática. Eu, alma um pouco mais tranquila, pedi desculpas por tomar-lhe o tempo.

E saí da sala sentindo às minhas costas, o riso do outro. Do outro que sabe mais e melhor.

Um comentário:

Castro disse...

Machado e sua fina ironia mostra como funcionava a cabeça do charlatão no século passado e vc. foi buscá-lo para mostrar que os métodos são os mesmos e que, de fato, funcionam, surtem os efeitos pretendidos pela vigarice ainda hoje.
Quinta-feira estarei presente. bjs.