quinta-feira, 28 de abril de 2011

Retrato

Raphael

Abro aleatoriamente o caderno e encontro uma folha de seringueira sobre o nome Carmelinda. Lembro-me dos olhos da senhora de 82 anos a percorrer a vastidão do passado com a vivacidade de uma criança: “Carmen, gosto que me chamem assim”, diz enquanto serve o café coado na hora.

Minutos antes eu a pressentia da varanda da casa de madeira. Vinha da janela o barulho das colheres mexendo vigorosamente o conteúdo das panelas, assim como a voz forte que aqui e ali corrigia datas e números mencionados pelo filho. “Lembro de todos os telefones e aniversários da família”, explicaria ela depois.

Sento em frente à mesa onde a senhora deposita junto às xícaras brancas, café, queijo caseiro e uma geléia com cor de goiaba cozida – parecia maravilhosa, mas a timidez impediu-me de provar! Ao meu lado, encontro o corpo esguio de dona Carmen. Está enfeitado com um sorriso que desmente os anos. “Sou analfabeta, mas trabalhei a vida toda organizando e resolvendo coisas”.

Meu pensamento se divide entre a realidade e a ficção. Quantas histórias ela tem para contar? Queria descobrir-lhe as aventuras, dores e saudades. Mas as panelas parecem gritar seu nome, ao mesmo tempo em que meus companheiros desviam dela o olhar.

Volto à rigidez do banco de madeira. É preciso ater-me a terra, ao som grave do homem que explica o trabalho, a rotina, a vida na propriedade. Esquecida do cheiro das árvores, rabisco no papel o que ouço ao redor. Mas algo nos olhos de dona Carmen me arrasta até as raízes nordestinas daquela que, a pouco, rezava por mim.

Nem sempre vi alegria em seus olhos, tão cheios de resignação (O que pensava e dizia para si mesma quando lhe pedia uma promessa para fazer parar a chuva?). Mas sinto saudade de seu cheiro de lavanda e talco. E das mãos crispadas por veias, tremendo quase no mesmo ritmo das pernas, enquanto folheava um livro, rezava o terço ou assistia à televisão.

Guardo dela um retrato antigo feito a lápis. Era bonita e ostentava na inclinação da face um ar aristocrático – motivo de tantas desavenças com o marido. Na velhice, o rosto modificou-se (corro a buscar o retrato).

A fotografia estampa, para além de sua existência, as rugas. As olheiras, idênticas as que trago comigo, parecem mais profundas; os lábios caíram levemente e o queixo acompanhou o movimento. Os olhos, agora, não camuflam mais a distância interposta entre ela e o mundo.

Será este o prenúncio de minha imagem?

Não há como ter certeza – embora eu desconfie que, em mim, o rancor não fincará suas marcas. Sobretudo porque busco ao invés da fuga, o encontro: É assim que espero amenizar os sulcos da pele e a profundidade da mancha negra que carrego sob os olhos.

Para, quem sabe, deixar aos netos – além da saudade – um pouco mais de esperança.

5 comentários:

eduengler disse...

Há algo mais aí, mais profundo, quase peguei o impegável, pois só tu podes, pega pelo rabo e alça...

Almanacre disse...

Identifiquei dona Carmem. Durante muito trmpo ela se chamou Nazinha. Bela crônica (ou seria depoimento?) sobre a personagem?

Montezuma disse...

A vastidão do passado com a vivacidade de uma criança. Que bela lição devemos aprender com dona Carmelinda e tantas outras que souberam viver a vida, receber e dar lições de esperança. Lindo, Vássia!

Jalul disse...

Vássia, vá no google, procure o site Lima Coelho. Tua crônica está lá.
Estás desde ontem nos meus favoritos, visse? Às quintas nos encontraremos.
Grande abraço, querida!
Mil beijos para as crianças.~
Leila Jalul

Jalul disse...

VÁSSIA, QUERIDA, FAÇO QUESTÃO DE ENCAMINHAR OS COMENTÁRIOS QUE O TEU RETRATO RECEBEU NO SITE DO LIMA COELHO. VEJA AÍ:

(8)COMENTÁRIOS
Muito show
Comentário Enviado Por: Vitória Caldas Em: 30/4/2011


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Vássia é filha de peixe. O site Lima Coelho ficará ainda mais rico com a presença dela.
Bienvenida, Vássia!
Comentário Enviado Por: Leila Jalul Em: 30/4/2011


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Beleza de memória. Gosto muito de gente que crê na família
Comentário Enviado Por: Maria Francisca Em: 29/4/2011


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Amo ler crônicas cheias de ternura como a sua
Comentário Enviado Por: Tati Em: 29/4/2011


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Parabéns Vássia
Comentário Enviado Por: Charles Lamounier Em: 29/4/2011


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Crônica linda de Vássia, o nome deve ser russo, o clima do texto lembra a lietratura russa, mas ela não vai legar aos netos apenas saudade e esperança, a dose maior será de amor.
Comentário Enviado Por: william porto Em: 29/4/2011


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Gostei do estilo: memória com projeção de futuro do próprio eu
Comentário Enviado Por: Márcia Lopes Em: 29/4/2011