quinta-feira, 26 de maio de 2011

Memórias de uma foca

Baard Ness

Não tenho boa memória. E nem posso culpar a idade, porque mesmo muito jovem a dita cuja me falhava nas coisas mais simples. O problema começou na infância, desconfio. Mas também não sei precisar datas. Na adolescência, conheci os lapsos de títulos e enredos de livros, filmes ou peças que havia visto, lido e me apaixonado. Depois vieram as saias-justas ao encontrar pessoas das quais minha memória havia borrado senão a fisionomia, o nome.

Até os trinta anos me consolei com a hipótese de que o problema seria resolvido à medida que os anos passassem. Ao contrário de todos os prognósticos, eu me inspirava nos mais velhos. Sempre adorei ouvi-los falar sobre suas lembranças de meninice, quando a cidade não tinha tantos bairros, carros, pontes, prédios. Ou quando os regatões percorriam os rios, as festas nos seringais duravam dias e as casas eram levantadas em mutirão.

Tudo me fazia crer que era possível eu chegar lá. Mas, ah, quanta tolice! Pois sobre a benevolente esperança pesou-me a dura realidade: a memória é um dom com o qual não fui abençoada pelo cosmos. Confesso que a constatação me levou à beira de uma série crise. Como é possível viver sem lembrar? Que diabos de histórias eu vou contar aos netos, ou mesmo às minhas filhas, ainda tão jovens, se me escapa a memória? Como poderão eles imaginar meus tempos de menina, sorrir ou chorar com minhas lembranças da vida, das cidades, dos amigos, da família?

A urgência por respostas me fez buscar novamente consolo. Desta vez um pouco mais longe: alcancei a Grécia e me refugiei em antigos filósofos, para quem, grosso modo, a excelência nunca foi uma condição democrática. Aliviada, superei parte da crise e procurei alimentar, na falta da memória, os exercícios cegos que faço por labirintos escuros e úmidos, em busca de explicações do passado.

Mas olhem que aqui e acolá recebo alentos. Esta semana mesmo fui conduzida – e agradeço muito por isso! – pelo jornalista Tião Maia a corredores que eu julgava esquecidos. Vi-me aos 15 anos levantando cedo e indo em direção à redação do antigo prédio do jornal A Gazeta do Acre, situado na Rua Quintino Bocaiúva, próximo à Quadra José de Augusto.

Eu fazia parte de um grupo de focas – sempre odiei esse nome dado aos novos repórteres – e havia chegado ali graças, em parte, a uma redação que obteve nota máxima e vários elogios no Colégio São José, onde eu cursava no período da tarde, não lembro exatamente que série.

Não posso afirmar quantas éramos no total, mas sei que a Socorro Camelo estava entre minhas companheiras e que eu era a única que ainda fazia o ginásio. Lembro também que engordei muito porque eu costumava matar a ansiedade comendo os biribotes da lanchonete que ficava em frente ao prédio. E foi a Val Fernandes, então fotógrafa do jornal, quem tirou o retrato que até hoje anda estampado em meu RG.

Mas voltando às focas! É natural que a situação do grupo fosse semelhante – todas queriam aprender os mistérios do texto jornalístico e ter uma chance de seguir a carreira –, não fosse o fato de o diretor do jornal, Elson Martins, ser também meu pai. Ah, como era delicada e sofrida a minha posição!

Quem trabalhou em redações com o Elson, ou conhece um pouco dele, pode imaginar o que foi a minha rápida estadia ali. Porque sabe que não é do seu feitio passar a mão na cabeça de repórter que não sua a camisa e, menos ainda, se o infeliz tiver parentesco tão próximo. Longe de facilitar minha vida, o diretor costumava dar em mim puxões de orelha maiores que os do editor e o do chefe de reportagem. Um deles, inclusive, quase enterrou de vez a possibilidade de eu trabalhar com o jornalismo.

Foi num dia em que os professores faziam uma manifestação na praça em frente ao Palácio do Governo. A equipe toda foi chamada para cobrir o evento e eu, fisgada pela adrenalina da redação e de repórteres como o Tião Maia – que parecia dormir e acordar escrevendo furos e excelentes reportagens –, não pensei duas vezes em cabular aula e seguir para o centro da cidade.

Centenas de pessoas lotavam a praça e as ruas que circundavam o Palácio e o prédio da Assembléia Legislativa. Eu ouvia as vozes em coro, acompanhava com emoção os braços levantados, os cartazes que rasgavam o ar pesado daquele início de tarde e pareceriam anteceder a violência que pouco tempo depois iríamos presenciar.

A polícia, armada de cassetetes, partiu pra cima dos manifestantes. Foi uma correria medonha, alguns caíam no chão e tinham que ser ajudados por companheiros para não serem esmagados pela multidão. Eu, lívida e com o coração quase me abandonando pela boca, corri parte da Rua Benjamim Constant e consegui, não lembro se com o fotógrafo, sair sem apanhar da polícia.

De volta à redação, a imagem era de camisas suadas, faces tensas, gestos nervosos. E em poucos minutos, as mais de oito máquinas tilintavam em ritmo frenético os textos sobre a violência ocorrida momentos antes contra os manifestantes, repórteres e fotógrafos. Os depoimentos, escritos no auge da indignação, ganhariam as páginas da próxima edição do jornal diário.

Lembrando isso agora, revivo na barriga o mesmo frio daquela tarde e o imenso buraco que abriu em meu ser quando a noite caiu e as palavras não foram capazes de ganhar o papel, até o fechamento do jornal, para dizer o que eu presenciei e senti.

No dia seguinte, trêmula, entreguei finalmente um texto. E escutei do Elson aquela que foi a primeira e definitiva lição de minha vida: um repórter de verdade nunca deixa para amanhã a notícia.

Claro que não lembro a cena, ainda que eu a sinta neste exato momento. Mas desde esse dia me resignei com a ausência de fibra para as reportagens de furo, da adrenalina na dose certa para acompanhar os momentos tensos e manter a rapidez com as palavras, fundamentais à denúncia e ao jornalismo diário.

Hoje, passados 25 anos desde o episódio, sei que é mesmo difícil, individualmente, cultivar a excelência em tudo. E que mais vale tirar proveito daquilo que cada um pode fazer de melhor e com toda a sua energia, paixão e honestidade.

No meu caso, busco, escuto e tento contar histórias. Sem pressa e sem a necessidade do furo. Mas com a mesma seriedade que se espera de um jornalista.

Ah, antes que eu esqueça! Para a falta de memória descobri em Quintana o remédio: "A imaginação é a memória que enlouqueceu", escreveu ele. Ora, eu acredito em poetas e considerando que não me falta imaginação, me consola pensar que algum dia, ainda que remoto, cheguei a ter uma boa memória.

4 comentários:

Anônimo disse...
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val fernandes disse...

Que bom eu faço parte da tua história...

Silvana disse...

Vássia
assim a escritora Vássia vai se revelando, aos poucos, que é pra não devorarmos todas suas partes de uma vez...
silvana

Anônimo disse...

VÁSSIA, QUERIDA, A MEL PUBLICOU "A FOCA". VEJA OS COMENTÁROS.
BEIJOS
LEILA JALUL

Parabéns Vássia
Comentário Enviado Por: Clarice Mota Em: 23/9/2011


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Muito especiais suas memórias
Comentário Enviado Por: Damiana Gois Em: 23/9/2011


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Véssia, muito gostoso o teu texto
Comentário Enviado Por: Nelma Marinho Em: 23/9/2011


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Conocrdo com Leila Jalul
Comentário Enviado Por: Mister X Em: 22/9/2011


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A FOQUINHA VIROU UMA FERA DA ESCRITA.
Comentário Enviado Por: Leila Jalul Em: 22/9/2011


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Uma memórias de aprendizados
Comentário Enviado Por: Érica Carvalho Em: 22/9/2011


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Lindas memórias Vássia
Comentário Enviado Por: Larissa Dias Em: 22/9/2011