quinta-feira, 9 de junho de 2011

Estos cigarillos

Cartaz original do filme Coco Chanel

Troquei a marca do cigarro. Sei que não há nada nesta informação que possa interessá-lo, mas se a piedade lhe fez alcançar esta linha, leitor, é possível que ao final do texto reste algo além de fumaça. Ou não.

Dito isto, explico que a mudança não se deu apenas por motivos mesquinhos como a falta de dinheiro – afinal, sempre há para alimentar o vício! –, mas por rebeldias silenciosas. Desta vez, a coisa começou com a lei da oferta. Veja o senhor que a cada biboca de esquina há, nas prateleiras, cigarros bolivianos ou paraguaios. Nem sempre estão visíveis por razões que me recuso a comentar agora, mas acredite: são fáceis de encontrar, custam a metade do preço de qualquer marca que leve o selo da Souza Cruz e ainda agregam valor linguístico.

Não, não se trata de apologia. Apenas me escapam as palavras e na solidão ensolarada desta tarde, a única coisa em pé ao meu redor são los cigarillos. Não reclamo. Gosto de vê-los morrendo aos poucos ao mesmo tempo em que consomem minutos que bem poderiam ser ocupados com hábitos mais saudáveis. Mas entre a promessa de vida estendida e a que resolvo queimar, há as fugidias palavras. As idiossincrasias desses dias tão despudoradamente luminosos e sem sentido.

Há também um barulho insuportável de motor. Desses que arrancam os matos que brotam das calçadas e caem, depois, junto à sujeira dos homens. Dos ralos, o calor faz subir um odor pútrido que, graças a minha simpatia pelos produtos de nuestros hermanos, se desvanece no ar sem ofender muito.

Ah, essa língua malemolente! Que saudade de ouvi-la e senti-la roçando meus ouvidos: Estos cigarillos te están matando. A primeira vez que li o aviso na carteira sorri contente, e pensei “Maravilha! Não se deram ao trabalho de alterar imagens para aumentar o horror. Usaram palavras”. Palavras, palavras, palavras! Quanto poder e susto podem morar nas menores e inofensivas palavras: Estos cigarillos te están matando...

Sim, os cigarros estão me matando. Assim como os verbos escorregadios, a espera, a imagem dos urubus devorando o cachorro atropelado na madrugada de hoje.

Morro um pouquinho também na pressa dos motoristas, no preço das passagens de ônibus, na falta de tempo dos amigos, no mau humor da moça que atende na padaria, na vilania alheia e até no horóscopo – que este mês promete turbulências, desencantos e outras agonias.

E então me dou conta que morro mais ainda na briga com as palavras. São elas, e não o mundo, que acoitam minha carne, abrem feridas na alma e fazem escorrer das entranhas o insustentável sangue.

É por elas que deixo queimar as últimas esperanças. E embalada pela sonoridade melancólica da língua – Estos cigarillos te están matando –, mais a solidão que tanto prezo, vejo morrer a tarde seguindo a fumaça escura e fétida dos cigarros bolivianos.

5 comentários:

Anônimo disse...

Mesmo falando de cigarros,é um belo texto, parabéns!Abraço, Aline.

Anônimo disse...

Que maravilha, Vássia!

Lembrei duma marchinha de carnaval que dizia: Este cigarro ainda mata um corno desse, será que é esse,será que é esse?

Minha quinta está ganha!!!
Leila Jalul

eduengler disse...

Vassinha, a hipocrisia moderna das pessoas e governos com suas fumaças de carros, motos, ônibus, barcos, aviões, indústrias, etc; pedem tal texto, não tenho vergonha de meu cigarro ou fogão a lenha, muito pelo contrário, tenho orgulho de ser humano e gente de verdade, sem ser hipócrita. Feliz texto.

Fernando disse...

Gosto de ler teus textos, até saindo fumaça.

Raphael Dimitri disse...

Texto sensacional!
Adorei, só não gosto muito dos bolivianos. rs

Abraços,
Raphael