quinta-feira, 2 de junho de 2011

Receita de médico


São 10h45 da noite e vou de carona com as crianças para o atendimento público de urgência. Após fazer a ficha no balcão, coisa de poucos minutos, entro na sala de triagem onde conversam, animadamente, três funcionárias. Digo-lhes a razão de estar ali e indico, nos braços e face de minhas meninas, as placas avermelhadas que aumentam vertiginosamente. Perguntam-me a idade delas, ao que respondo 8 e 13 anos. “É uma pena, mas se ela tem 13 anos – a moça sorri sem graça – terá que ser atendida pelo clínico geral. E a menor, pelo pediatra”.

A informação, aliada ao fato incontestável de os sintomas serem idênticos nas duas, me faz soltar o desabafo: Sou uma mãe só. Solidária ao fato de eu ainda não ter o poder de me multiplicar corporalmente em duas, a moça estende as senhas e sugere que eu converse com o primeiro médico que chamar. “Explique a ele que são os mesmos sintomas e veja se ele atende”. Retribuo a boa vontade com um sorriso e saio da sala mais tranquila.

Cinco minutos depois entramos no último consultório à direita do corredor largo e claro. Sentado atrás da mesa encontra-se um homem com fios de cabelos grisalhos e cara de poucos amigos. Sigo a orientação da moça da triagem e tento explicar-lhe a situação, mas antes que eu possa terminar a fala, o pediatra – remexendo-se impaciente na cadeira – diz que é impossível atender a mais velha das irmãs.

Sem alternativa, deixo que ela siga sozinha para a sala de espera enquanto explico ao insensível médico a crise alérgica, de origem desconhecida, que me fizera levar as crianças ao atendimento de emergência. Sem sair do lugar, ele pede para a caçula aproximar-se da mesa e examina-lhe a garganta. Saca a caneta, o bloco de receitas. E sem olhar para nenhuma de nós prescreve – em uma consulta que não durou três minutos – duas injeções e outros dois medicamentos.

Saio da sala tomada por uma sensação estranha de indignação, mas não me sobra tempo para alimentar nenhum sentimento: a filha mais velha encontra-se no final de uma fila com outras cinco pessoas. Todas aguardando o entra-e-sai de três prisioneiros que se revezam no consultório do clínico geral.

Sorrimos as três pensando que é noite de sexta-feira. E enquanto seguimos com os olhos o movimento dos presos e dos policiais, falamos sobre banalidades na tentativa, talvez, de tornar mais leve o som do peso das correntes nos tornozelos e pulsos.

Meia hora depois, entramos no consultório do clínico geral e apesar da expressão simpática, sua agitação não nos convida a sentar. É preciso ser rápido. Repito, então, a sequência de informações dadas anteriormente ao pediatra. E tão logo pronuncio a palavra “alergia”, vejo o clínico geral arrastar para perto o bloco branco, equilibrando os olhos em nossa direção enquanto as mãos faziam movimentar rapidamente a caneta para prescrever duas injeções e três medicamentos.

Dadas as injeções, voltamos para casa. Onde me aguardava, na inquietação da madrugada, os garranchos médicos para decifrar. Por que cargas d´água ainda há profissionais que fazem questão de entregar a seus pacientes receitas incompreensíveis?

Pensando nisso, lembrei de Rabelais. Acho que foi ele quem disse ser a ignorância a mãe de todos os males. Não sei exatamente em que circunstâncias o escritor francês, e também médico, fez a afirmação. Até pensei em pesquisar o assunto, mas tomada pelo cansaço deixei-me levar pela imaginação.

2 comentários:

Anônimo disse...

Vássia
que travessia por mil desertos tem que passar uma mãe nesse país do salva-se quem puder...
pelo menos você escreve, pelo menos você canta...
beijos pra vocês meninas
Silvana

Anônimo disse...

Vássia, faço anexar os comentários feitos ao teu post no site do Lima Coelho. Beijos Leila Jalul Gostei do jeito que fizeste a denúnica. Serena e certeira
Comentário Enviado Por: Charles Lamounier Em: 27/6/2011


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É assim mesmo
Comentário Enviado Por: Luciana Cintra Em: 27/6/2011


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Vássia você descreveu a realidade nua e crua. E olhe que você não é pobre e nem preta porque se fosse teria sido bem pior
Comentário Enviado Por: Odete Em: 27/6/2011


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Essa é uma dor que dói em todos que precisam da saúde pública no Brasil.
Dizem que vai melhorar...
Comentário Enviado Por: Leila Jalul Em: 27/6/2011


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É Vássia a gente nessas horas se sente um nada
Comentário Enviado Por: Martha Vilarinhos Em: 27/6/2011


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Gostei do grito! Bem dado e com classe. Na maior
Comentário Enviado Por: Keila Azevedo Em: 27/6/2011


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Como entendo o seu desabafo!
Comentário Enviado Por: Tati Em: 26/6/2011