quinta-feira, 29 de maio de 2014

Tontonha


Tontonha não carecia de lembranças. Suas histórias, sempre tão vivas, emergiam da fala mansa ao mesmo tempo em que os olhos se despediam da cadeira de balanço onde ela sentava, da janela aberta em par para o quintal e dos santos pendurados na parede, para alcançar o não-espaço.

Com a cabeça deitada em seu colo, eu adivinhava a partida pelo breve silêncio que ela fazia após uma de minhas perguntas. Era um silêncio carregado de palavras e, muitas vezes, angustiante como navio que afunda.

De início, eu buscava decifrá-lo: levantava a cabeça e olhava os olhos dela. Mas, ah! Quanta vertigem eu senti todas as vezes que o fiz... Então desisti. Não porque tivesse medo de naufragar junto. Mas porque comecei a desconfiar que desvendá-lo se igualava a um sacrilégio.

Por esta época, minhas perguntas deixaram de ser prosaicas para ganhar uma dimensão que reconhecia, em Tontonha, a mulher e seus demônios: Nunca beijou na boca? Como é possível?!

E aí o silêncio.

Mas um silêncio tão profundo e diferente dos outros, que não controlei o impulso de procurar seus olhos. Estavam quase mortos, como se todo o azul da tristeza tivesse colorido as pupilas. E a face, minutos antes serena, anunciava tormentas. Senti um leve tremor em seus lábios, suas rugas gritaram e um mar salgado inundou a esclera.

Meu coração, esmagado, soluçava feito louco: “Por que perguntastes?”.

Não havia mais remédio. A tarde era quente, um ar pesado e úmido tomava conta da sala. Lá fora, possivelmente cantavam os passarinhos, mas nem eu e nem ela, ouvíamos. Estávamos, então, na proa do navio que afunda. E o silêncio aterrador nos consumia enquanto cada um de nossos demônios brincava de açoitar, lamber e cuspir nossos corpos e almas.

Tontonha. Tu, que nunca beijastes na boca. Tu, que sabias prender a chuva no copo. Tu, que me acalentava nas noites de angústia. Tu, que rezavas por mim. Tu, tu, tu.

Ouço o lamento do meu coração. Bate fraco, de saudade.


4 comentários:

Jalul disse...

Bom que o Toda Quinta voltou com as crônicas poemadas que tão bem sabes escrever. Totonha me trouxe lembranças de uma pessoinha amada..

Unknown disse...

Viva Toda Quinta! As suas crônicas tocam fundo no coração da gente! Parabéns. Arquilau

Vássia Silveira disse...

Que bom, Leila, fico feliz! Arquilau, contente de te ver aqui... Abração

Gil Maulin disse...

linda totonha!