quinta-feira, 21 de agosto de 2014

O diabo do detalhe

Paul Klee

Confesso que a vida e meu cotidiano me consomem de tal maneira que sinto dificuldade de expressar a minha opinião sobre temas aparentemente mais urgentes. Digo aparentemente porque mesmo correndo o risco de ter meus textos taxados de forma pejorativa como exemplo de “literatura feminina” – “Essa coisa de falar das filhas, da casa, dos bichos”, ouvi certa vez de um leitor –, sigo prezando as coisas miúdas. Afinal, o diabo não mora nos detalhes?

Acredito que sim. Tanto que esta semana vi tomar forma definida um sentimento que me apertava o peito e eu não conseguia nomear. Tudo aconteceu após a leitura de um artigo no qual meu pai, um jornalista apaixonado pela Amazônia, declarou seu voto à Marina Silva nas eleições deste ano: “Entendo que Marina terá mais compromisso com o Acre e com a Amazônia que a Dilma, porque é filha de seringueiro; porque abriu caminho numa vida sofrida na floresta; porque é iluminada e sabe enxergar com o coração as necessidades fundamentais dos povos da Amazônia”.

Ao lê-lo tive vontade de chorar. Sob meus olhos passearam imagens de pessoas que conheci de chinelos, sentadas no chão da sala de minha infância enquanto discutiam política com meu pai e saboreavam o porco no tucupi feito por minha mãe. Hoje, essas figuras ocupam importantes cargos no cenário nacional, calçam saltos finos ou sapatos lustrados, sentam em confortáveis poltronas e posso garantir que já não comem uma das especialidades culinárias de minha mãe nem frequentam a casa onde cresci.

Sim, os tempos mudaram. E a vida para quem passou a fazer parte do poder, também. Muitos, e digo isso por ter visto de perto, esqueceram a origem humilde e trocaram as antigas lutas ideológicas por joias e parafernálias que mostram a ascensão social. Para esses, os igarapés, os rios, as estradas de barro, as aldeias indígenas, os seringueiros e as parteiras da Amazônia deixaram de ser parte da alma para ocupar um discurso – vazio, ainda que convincente.

Por outro lado, e só o Quixote de Cervantes pode explicar a razão, há quem tenha escolhido seguir com os chinelos, alimentando as velhas inquietações em espaços cada vez mais reduzidos.

Entre eles vejo meu pai. Dói-me imaginá-lo deitado na rede de nossa antiga casa, rodeado por seus livros, jornais, fotografias e anotações, enquanto o espírito mastiga as utopias que dão vida aos seus textos, sempre tão lúcidos, comoventes e apaixonados.

É uma dor difícil de explicar, a minha. E sinto vergonha quando penso que sua origem pode estar na minha incapacidade de seguir acreditando em determinadas pessoas ou situações, o que é apenas um detalhe.

E aí voltamos ao sentimento que me incomodava e finalmente posso nomear: orfandade.

Sinto-me, e isso nada tem a ver com a queda do avião que matou Eduardo Campos e colocou a Marina na corrida presidencial, órfã de candidatos.  Eu, que sempre acreditei na esquerda; que levantei bandeiras em todos os comícios do Lula e conheci de perto os fundadores do PT no Acre, não estou à vontade para votar na Dilma ou na Marina. A primeira porque representa um poder que para mim se assemelha atualmente aos tentáculos de um polvo descontrolado; e a segunda, porque sou desconfiada – Isso me impede, por exemplo, de esquecer a posição que a bancada evangélica mantém em relação a temas, ou mais precisamente a liberdades, que considero fundamentais.

Eu até poderia me tranquilizar com a declaração dada por Marina, em 2009, de que o “Brasil, graças a Deus, tem um estado laico”... Mas, como disse, sou presa a detalhes.

E tratando-se em morada do diabo, prefiro acreditar que todo cuidado é pouco. Ainda que isso signifique deixar doer a minha orfandade.

4 comentários:

Anônimo disse...

Querida amiga. Sabes que não sou mito feita a leituras, quaisquer que sejam. Só leio textos pequenos. Sempre conversamos sobre tudo: amigos, família, trabalho sol se pondo, mas nunca sobre política. Sua chamada me fez vir aqui e devorar seu texto no seu blog.
Traduziu exatamente o que estou sentindo sobre as eleições.
Obrigada.
Beijos.
Bia Karasiak

beijamim disse...

Muito boa tua reflexão, porque espelha e dá voz às reflexões honestas de muita gente. Compartilho as mesmas questões, fico preocupado, percebo a exatidão destas constatações. É muito trem desgovernado para pouco trilho. Mas também acredito na fala do caboclo quando ele diz que "o tempo está acochando", e que os resultados de nossas escolhas não tardam a chegar. Isso é bom, para quem tem olhos mais acordados.

Jalul disse...

Querida Vássia, meus sentimentos são os mesmos seus. As pessoas que conhecemos são as mesmas, Levantamos as bandeiras das mesmas cores e, tanto quanto você, sinto-me indisposta a acreditar na dita esquerda. Na nossa longa conversa que terminou em entrevista, falamos um pouco sobre isso. Meu sentimento maior, confesso, não é tanto o da orfandade. É mais de indiferença. E tenho mil razões para isso.
Às vezes, recolhida à minha insignificância, penso em determinadas figuras que frequemntaram minha casa e acreditavam no porvir – afinal nossos homens e mulheres tinham tutano ideológico. Não que fossem salvadores da pátria, mas que saberiam lutar por causas locais, regionais e nacionais. Pura (ou puta) ilusão! Apesar disso, nada impede que reconheça alguns pequenos avanços de alguns ocupantes das cadeiras de governador do Acre e prefeitura de Rio Branco que, no passar de seus mandatos, deixaram alguma coisa boa de se ver, ainda que pudessem ser chamados de maquiadores que nunca chegaram a atingir o âmago das questões maiores.
Jorge Vianna, por exemplo, antes mesmo de Lula ser Presidente, foi prefeito e governador do Estado. Nunca vi uma população tão alto astral. O tal parque da maternidade, com seus vistosos portais, o calçadão da gameleira, a revitalização de monumentos, por exemplo, fizeram de Jorge um menino de ouro da política acreana. Veio o Binho, sócio das idéias da Marina seringueira, que pouco fez, por tão tolhido por Jorge e Tião. Em mandato tampão, com limitações, imagino, Binho pouco pôde fazer. E eis que chegou Tião, um médico com excelente qualificação, que deu ao Estado hospitais que supriram grandes lacunas para a classe pobre. Hospital do Câncer, das crianças, dos idosos, cidade do povo e outras obras de porte, digamos assim. Envolto em escândalos da tal operação G7, ao que parece, não caiu no descrédito total. Ficou apenas arranhado, haja vista o que refletem as pesquinas.
Na prefeitura de Rio Branco, vibrei por Angelim, a quem reconheço íntegro, até que provem o contrário. Antes destes, viu-se um Estado saqueado por governos que nem mais lembramos os nomes. Eu faço questão de não procurar lembrar.
Não fosse a mudança do meu destino, estivesse no Acre, teria em quem votar. Pesando os ganhos e perdas, teria sim. Hoje, como eleitora baiana, não me animo a sair de casa, sacrificando o resto que tenho de pés, para entrar numa fila de votação. Um atestado médico justificará minhas limitações.
Em Dilma e Marina, também fico de fora. O Estado laico de Marina e Dilma não é o meu. Até porque não é laico. E jamais será.
Lembro sempre de uma lenda sobre um reino administrado por um rei maligno e cruel com os súditos. Morto o rei, nomeado o novo ocupante, cresceu a malignidade e a crueldade com o povo. De tão malvados, sempre que percorriam as ruas , eram vaiados e esculachados pelos plebeus que viviam na chibata, Outro rei assumiu e, nas comemorações, foi igualmente vaiado e insultado pela multidão nervosa e amedrontada. Nesse dia, ouviu-se e viu-se um velhinho de seus 80 e lá vai pancadas de anoa que o aplaudiu freneticamente.
Chamado à presença do rei, perguntado sobre o porquê do aplauso, respondeu o velhinho: aplaudi porque o que virá depois poderá ser pior.
Isto é apenas uma lenda. Sem comprovação científica (risos). Pelo sim, pelo não, respeitarei quem vier, embora não me saiam das lembranças as pessoas que vimos sentadas no chão das nossas casas, comendo as comidas que preparávamos e noa alimentando de ilusões de que bons sonhos seriam possíveis de acontecer.
Por enquanto vou curtindo o descrédito, o desânimo e as limitações dos meus pés. Ademais, na morada do diabo, também acho que falar de filhos, escrever sobre pessoas que fizeram parte da nossa história e tricotar, ainda é um bom negócio. A confiança acabou.

Vássia Silveira disse...

Bia, Beijamim e Leila: não posso dizer que é bom saber que há mais gente com o mesmo sentimento... Mas eu estaria mentindo se negasse que é um alívio não se sentir sozinha.