quinta-feira, 23 de abril de 2015

O Cáucaso felino

Dan Marbaix

Acontece em dias como o de hoje, quando a chuva mancha de cinza o céu e os carros no asfalto se assemelham ao tique-taque dos antigos relógios, de eu despertar pensando na vida. Isso inevitavelmente me leva às miudezas do cotidiano. Portanto, leitor, se você se ocupa com coisas grandes e não tem tempo a perder, sugiro que deixe de lado este texto: é pequeno e inútil o que vou contar.

Trata-se da desventura do gato da vizinha. O bichano, que a partir de agora chamarei de Prometeu, chegou à casa de baixo acompanhado de seus donos (um casal e duas crianças), uma cadela e dois filhotinhos de pastor alemão. E porque há uma predisposição a respeitar aqueles que dividem suas camas com os animas, sobretudo cachorros, os demais moradores da rua não tardaram a alegrar-se: que bela família!

Devo confessar, não sem uma ponta de pudor, que cheguei a sentir inveja: os novos vizinhos ressaltavam a minha inabilidade com os cães e ao vê-los reunidos harmoniosamente entre 12 patas caninas, eu me sentia menos gente.

Não tenho dúvidas de que tal sentimento teria crescido a ponto de me prostrar, não fosse o apego que tenho às misérias do cotidiano. E é aí que entra o Prometeu. Uma semana após a instalação da família e com a rotina da casa já extravasando as paredes, pude saber, graças ao pobre felino, do horário em que as crianças vão à escola e do tempo que passam investigando o mundo na ausência dos adultos.

Agora, por exemplo, tudo é silêncio lá embaixo. Logo mais, o portão de ferro irá ranger, os cachorros latirão, ouvirei em seguida uma pressão maior na porta de madeira e vidro – será um chute do pequeno? – sugerindo que a mesma está emperrada, e depois o barulho das tampas das panelas e o riscar dos talheres nos pratos. Em seguida, a televisão será ligada e dependendo do humor entre os irmãos, a disputa para a escolha do canal se dará em meio a gritos e o aumento ensurdecedor no volume do aparelho.

O vencedor é dado a conhecer graças a Prometeu. Não fico feliz em constatar isto, mas após seus exaustivos e agonizantes miados, cheguei à conclusão de que quando o trono televisivo é do irmão, a menina afoga sua ira no bichano. No primeiro dia que o escutei gritar, corri escada abaixo pensando que o filhote estava sendo açoitado pelos cães. E mal pude disfarçar o terror ao vê-lo engasgado nas mãos da menina: “Faça isso, não, minha flor. Desse jeito você vai matar o bichinho”, tive vontade de dizer, mas confesso que parei na primeira frase. E ao ver aqueles pequenos olhos brilhando de satisfação, voltei para casa me sentindo vazia e desconfiada da inocência das crianças.

Com o passar dos dias, descobri que uma pequena de cinco anos pode ter muita ira para afogar. E a julgar pela condescendência paterna – acho que não contei antes, mas cheguei a descer em outra ocasião e encontrei-a enforcando o gato ao lado do pai –, a origem de tal sentimento não se limita à escolha de um programa televisivo.

Desde então, me aflige o destino de Prometeu. E minhas tardes, antes silenciosas, são agora como o bico da águia mitológica: uma eterna promessa de morte. 

5 comentários:

Warken disse...

Cara escritora, segui o texto até o fim, e fiz bem.

Dermeson disse...

Também segui, mas prefiro a meiguice da perdida, como diz a Nana ela é diva!!!

beijamim disse...

Muito boa história. O cotidiano é revelador para quem realmente o espreita...





Jalul disse...

Isso é mais uma maldade da elite branca! Coitadinho do Prometeu.
Amiga Vássia, nunca duvide da crueldade das crianças.

Anônimo disse...

Querida Vássia
O cotidiano descrito por você se torna interessante nos pequenos e grandes detalhes. Não acredito na maldade inata das crianças, mas na aprendida com os adultos. Bj. Lu Gomes.