quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

Pluralia tantum

M.C. Escher

Acho que foi aos treze anos a primeira vez que ouvi dizer que era preciso usá-los sempre. Na época, ganhei um modelo com lentes que escureciam bruscamente à luz, uma escuridão repentina que, para azar meu, não protegia da zombaria alheia nem do fogo amigo. Além disso, colocá-los pela manhã era experimentar a turbulência de uma montanha russa: o chão afundava, ondulava, abria outra dimensão e eu demorava alguns minutos até me acostumar a ela.

Não tenho como garantir se foi este o desconforto que me fez, contrariando as orientações recebidas, abandonar os óculos. Tampouco recordo se a decisão foi acatada com suavidade por meus pais que, afinal, tinham empregado um bom dinheiro para garantir que eu enxergasse melhor o mundo. Sem saber, é claro, que para uma menina tímida, rodeada por colegas de escola cuja beleza e desenvoltura alargavam distâncias, usar lentes de humor tão volátil para enxergar melhor o mundo não era lá muito atraente.

Mais tarde, dei mão à palmatória e assumi que se quisesse ler tinha que usar os óculos. Dispensei, por via das dúvidas, as lentes fotossensíveis – por sinal, mais caras que as tradicionais! –, mas fiz questão de comprar uma armação grossa, colorida, indisfarçável.

A questão é que descontando os momentos frente a um bom livro ou filme, o que eu gostava mesmo era da perplexidade de ver o mundo sem tanta nitidez. Entristecia-me, por exemplo, a descoberta de que o cartaz que eu havia lido antes sem os óculos não anunciava a venda de ASAS, mas de CASAS; e que junto ao gentil e solidário aviso VENDE-SE FIADO, havia sempre uma frase em letras menores a enterrar a esperança.

Ah, que mundo mais sem graça este!

Daí que por mais de vinte anos, usar ou não os óculos era a medida para saber até que ponto eu estava disposta a enxergar de forma nítida, imagens provavelmente mais interessantes quando turvas. Não pense o leitor ou a leitora que tal decisão foi tomada impunemente. E digo isso lembrando, por exemplo, de algumas aventuras amorosas – sobre as quais me pergunto, hoje: Eu as teria vivido caso estivesse de óculos?

Vai saber. O fato é que por muito tempo mantivemos uma relação que se assemelha àquelas cujas pequenas alegrias se dão em segredo. Isso significa dizer que quando estava trabalhando, lendo ou ia ao teatro, cinema, exposição, usava-os. No mais, eram para mim dispensáveis.

E tudo ia muito bem, obrigada: Eu conseguia tomar o ônibus certo, pois tinha desenvolvido a habilidade de reconhecer, pela extensão do nome, aquele que me levaria ao local desejado; não dependia do cardápio dos bares ou restaurantes para saber o que ia pedir; e se não enxergava os amigos na rua, a culpa nunca foi da ausência dos óculos, e sim do hábito de caminhar com o pensamento em outras paragens.

Ah, mas as peças que o tempo prega na gente! Há dois anos descobri, com certo desespero, que não lia mais a bula de alguns remédios. Fui correndo ao oftalmologista. Saí de lá com uma receita de lentes multifocais, o grau aumentado e o desconsolo de saber que a tendência era ficar cada vez pior.

Isso dito, o tempo se encarregou do resto.

Aos poucos fui percebendo que para enxergar a hora no celular eu precisava usar os óculos; para saber quem estava me ligando também; a mesma coisa ao tentar adivinhar o letreiro dos ônibus; as placas de sinalização; os avisos nos caixas eletrônicos. E quando me dei conta, eu já precisava usá-los para cozinhar, lavar a louça, limpar o chão da casa, falar sério com as filhas e até para comer.

Outo dia, sem perceber, eu entrei no chuveiro com eles. Foi o fim da picada! Senti-me vencida pelos óculos. E um pouco solitária, um pouco triste, um pouco traída por aquela menina de treze anos que, na sua indulgência, me fez crer que enxergar melhor seria sempre uma questão de escolha.

As bulas de remédio, para as quais resolvi comprar uma lupa, estão aí para provar que não.

Um comentário:

Jalul disse...

Meu processo foi mais ou menos esse, Vássia, até chegar onde cheguei. Demorei demais ao sentir os efeitos danosos da catarata... e o resto você já sabe.
Como bem me disse o médico, o aro não é uma cangalha tão difícil de suportar. rs