sábado, 2 de maio de 2020

O exercício da flor

Li Shan


Neste exato instante, em algum lugar do mundo, uma pétala se despede da flor. E antes de repousar na terra – não sei se árida –, entrega-se aos braços do vento. Mesmo com as pálpebras cerradas é possível imaginar a coreografia: há um rumor de folhas ao fundo, os pássaros estão quietos.

Aos olhos do observador, a cena não dura mais que alguns segundos. Mas o tempo da pétala é outro.

Sei que, abertos os olhos, repousa na janela outra imagem. Então os mantenho fechados. Interessa-me adivinhar o caminho desse pequeno ser, cuja pele tem textura sedosa, um corpo lânguido, cor de qanik. E séculos e séculos de memórias agitando as nervuras.

Deixando-se carregar gentilmente, e mesmo sabedora da despedida, há, eu sinto, um leve sorriso em sua face. Ouço-a dizer, quase sussurrando, sobre as alegrias e misérias, as ilusões que precisou viver para aprender a esvaziar-se. Não há rancor nenhum no espírito que lhe dá nome. Só a tardia compreensão de que a vida é muito mais do que se pode falar.

O vento silencia. E a pétala alcança, enfim, a terra. Com uma tristeza quase alegre, penso o quanto é bonita e assustadora essa despedida. E que nada sei do destino da flor, além do fato de que ela assim permanecerá por mais tempo.

Um ronco de motor me distrai. Abro os olhos. E então me dou conta, ainda sentindo nas pontas dos dedos alguma leveza, de que a paisagem da janela é uma extensão da trajetória daquilo que, minutos antes, eu chamava de pétala.

5 comentários:

Unknown disse...

Fazia tempo que eu não lia algo escrito pela Vássia. Há sempre algo que alcança meu coraçãoo em sua escrita, alguma maneira de olhar o mundo que eu não tive e que agora tenho, através de seus versos.

Marilia Kubota disse...

Que lindo!

Jalul disse...

Que maravilha, alma-irmã! Te beijo e abraço com o carinho de sempre.

ana disse...

Que bom ter voltado :)

Lisi disse...

Te conheci hoje pela poesia da Alfonsina por tuas mãos. Me alegrou, nestes tempos sombrios e angustiosos, descobrir toda quinta e que compartilhamos a mesma geografia. Voltarei, toda quinta.