* Para Márcia Corrêa
Saio à rua carregando a noite mal dormida. Pesam-me as pálpebras, os pés, as idiossincrasias que até ontem se aninhavam em meu colo. Sinto falta de minhas cobertas, mas ao mesmo tempo, me agradam o vazio, o silêncio e a sombra daquilo que logo será a primeira claridade do dia.
Os vizinhos ainda enredam seus sonhos ou pesadelos, e apenas os moradores da casa em frente estão com as luzes acesas. O que fazem, afinal? Por que levantam tão cedo?
Com a pergunta, me dou conta de que não desconheço apenas os afazeres, manias ou desejos de meus vizinhos. Desconheço também seus nomes, seus laços familiares e – vergonha das vergonhas! – suas fisionomias. Terei eu aversão a eles? Ou esta é apenas mais uma prova de minha displicência com a vida ao redor? Ah, são tantas as dúvidas nesta manhã que ainda ensaia!
Sigo caminhando e ao notar os sacos de lixo à espera da passagem do caminhão me ocorre que é realmente uma sorte morar em uma rua sem cães vadios. Ponho-me a rir sozinha: Não faz muito tempo que vi a sisuda senhora limpando a sujeira da calçada e esbravejando, sem parar, “malditos cães vadios!”, “malditos cães vadios!”.
Subo as escadas do ônibus e acompanhada por um coro de bocejos, me dirijo à última fileira de bancos, sentando rapidamente à janela. Só então percebo que por descuido ou sonolência mesmo, deixei para trás o livro com o qual pretendia ocupar o tempo no trânsito. É provável, agora, que eu acabe dormindo. A constatação me fez lembrar da adolescência, quando achava graça e não compreendia como era possível que alguém dormisse sentado –– e hoje, aqui estou eu, recostando-me diariamente em poltronas duras, com olhos normalmente pesados e uma mesma indecisão, me entregar ao sono ou aos devaneios?
Ah, os devaneios que surgem numa viagem de ônibus! E o que dizer das histórias, dos personagens? Por isso odeio as conversas de ônibus – principalmente aqui, onde, me parece, o pudor não acompanha os passageiros –, elas me obrigam ao exercício da abstração, do respeito à vida alheia, da discrição e, ao mesmo tempo, são um prato cheio.
Portanto, tenho seguido, sempre, com um livro entre as mãos. Algumas vezes, é verdade, o sono não me deixa continuar a leitura e antes que eu sucumba ao formigamento da curiosidade, acabo cochilando ou então acompanhando o fluxo desordenado de pensamentos, imagens, recordações, medos, anseios, lembranças.
São nestas horas, por exemplo, que me açoitam a recordação dos fracassos, os atalhos que se revelaram abismos, os fios cada vez mais brancos, e que provavelmente morrerei pintando, as palavras mudas. Àquelas que somem sem aviso prévio, me largando, abatida e solitária, na alvura.
Olho o relógio e constato a inutilidade de meu esforço. É preciso acordar ainda mais cedo. Percebo que novas pessoas subiram ao ônibus. O ar está pesado, quente, irritadiço. Uma onda de indignação toma conta de alguns passageiros que reclamam, batem no teto do veículo enquanto outros, acomodados, reviram os olhos e torcem a boca em sinal de desaprovação.
Lá fora o sol se espalha sobre a montanha, o mar, os telhados, as calçadas, as ruas. As crianças seguem em direção à escola, velhinhos de mãos dadas passeiam pela areia morna da praia e algumas mães ou avós saem da padaria levando nas mãos o pão, o leite.
Quem dera minhas palavras raiassem com o dia.
Enquanto dormem as palavras: Gotan Project
Os vizinhos ainda enredam seus sonhos ou pesadelos, e apenas os moradores da casa em frente estão com as luzes acesas. O que fazem, afinal? Por que levantam tão cedo?
Com a pergunta, me dou conta de que não desconheço apenas os afazeres, manias ou desejos de meus vizinhos. Desconheço também seus nomes, seus laços familiares e – vergonha das vergonhas! – suas fisionomias. Terei eu aversão a eles? Ou esta é apenas mais uma prova de minha displicência com a vida ao redor? Ah, são tantas as dúvidas nesta manhã que ainda ensaia!
Sigo caminhando e ao notar os sacos de lixo à espera da passagem do caminhão me ocorre que é realmente uma sorte morar em uma rua sem cães vadios. Ponho-me a rir sozinha: Não faz muito tempo que vi a sisuda senhora limpando a sujeira da calçada e esbravejando, sem parar, “malditos cães vadios!”, “malditos cães vadios!”.
Subo as escadas do ônibus e acompanhada por um coro de bocejos, me dirijo à última fileira de bancos, sentando rapidamente à janela. Só então percebo que por descuido ou sonolência mesmo, deixei para trás o livro com o qual pretendia ocupar o tempo no trânsito. É provável, agora, que eu acabe dormindo. A constatação me fez lembrar da adolescência, quando achava graça e não compreendia como era possível que alguém dormisse sentado –– e hoje, aqui estou eu, recostando-me diariamente em poltronas duras, com olhos normalmente pesados e uma mesma indecisão, me entregar ao sono ou aos devaneios?
Ah, os devaneios que surgem numa viagem de ônibus! E o que dizer das histórias, dos personagens? Por isso odeio as conversas de ônibus – principalmente aqui, onde, me parece, o pudor não acompanha os passageiros –, elas me obrigam ao exercício da abstração, do respeito à vida alheia, da discrição e, ao mesmo tempo, são um prato cheio.
Portanto, tenho seguido, sempre, com um livro entre as mãos. Algumas vezes, é verdade, o sono não me deixa continuar a leitura e antes que eu sucumba ao formigamento da curiosidade, acabo cochilando ou então acompanhando o fluxo desordenado de pensamentos, imagens, recordações, medos, anseios, lembranças.
São nestas horas, por exemplo, que me açoitam a recordação dos fracassos, os atalhos que se revelaram abismos, os fios cada vez mais brancos, e que provavelmente morrerei pintando, as palavras mudas. Àquelas que somem sem aviso prévio, me largando, abatida e solitária, na alvura.
Olho o relógio e constato a inutilidade de meu esforço. É preciso acordar ainda mais cedo. Percebo que novas pessoas subiram ao ônibus. O ar está pesado, quente, irritadiço. Uma onda de indignação toma conta de alguns passageiros que reclamam, batem no teto do veículo enquanto outros, acomodados, reviram os olhos e torcem a boca em sinal de desaprovação.
Lá fora o sol se espalha sobre a montanha, o mar, os telhados, as calçadas, as ruas. As crianças seguem em direção à escola, velhinhos de mãos dadas passeiam pela areia morna da praia e algumas mães ou avós saem da padaria levando nas mãos o pão, o leite.
Quem dera minhas palavras raiassem com o dia.
Enquanto dormem as palavras: Gotan Project
3 comentários:
gostei minha amiga,
contudo discordo da areia morna neste horário da manhã,
em verdade é fresca.
Delícia, Vássia. Antigamenre eu pensava que escrever só valia a pena se fosse sobre grandes temas. Por isso não escrevia. Depois descobri que os grandes temas são lufadas de vendo, e que grandes e belos são os recortes de cada dia. Bjs!
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