quinta-feira, 26 de março de 2009

O Beijo

Elas estavam em frente ao jardim do teatro e não fosse o beijo, seguido de rude comentário que ouvi, o café teria sido como outro qualquer. Depois de sair do balcão, procuraria uma mesa na calçada e tomaria em silêncio o líquido fumegante. Permaneceria alheia ao movimento, as formas e mesmo ao colorido das cenas visíveis buscando, num esforço que me parece cada vez mais urgente, o sutil.

Mas a menina de cabelos compridos e louros, com mechas que roçavam as asas de uma borboleta tatuada na altura dos ombros, inclinou a cabeça para a esquerda, segurou com doçura o queixo da outra – e penso que por um instante olharam-se com muda ternura –, beijando-a em seguida nos lábios.

A cena quebrou a modorra dos homens. Sentados em uma mesa ao lado, os dois entreolharam-se zombeteiros e o que aparentava ser mais velho, uns 28 ou 30 anos, abriu as pernas, largou com violência o copo sobre a mesa, arrumou os fios de cabelo pregados na testa suada e grunhiu: “Era só o que faltava! Se fosse conhecida minha, arrancava dali à porrada”.

Não satisfeito, falou mais alto: “Ehe guria, vem cá que eu te mostro o que é bom”. Antes afundado na cadeira, ele agora se empertigava, fazia escárnio, cutucava o amigo e olhava ao redor como se buscasse também nos desconhecidos, apoio para engrossar o protesto.

Nossos olhos cruzaram-se. Senti os músculos da face se retesarem e tive a sensação de que meu olhar era agora duro, frio, cortante. O homem sorriu desconcertado, baixou a cabeça, soltou a camiseta, coçou a testa, arrumou mais uma vez os cabelos e voltou a tomar o refrigerante.

Um sentimento de profunda vergonha tomou conta de mim. Tive ganas de voltar os segundos para desencontrar-me daquele homem, para que meu espírito permanecesse embalado somente pela beleza daquele instante de paixão, amor ou ternura entre as meninas, voltar o tempo para que minha face se quedasse tranqüila como uma brisa de outono ou ondas que desistem de quebrar na praia.

Não sei ao certo o que me trouxe à memória esta história. Talvez a anotação que fiz naquela tarde em uma caderneta. Algo sobre a crença e a procura por um retrato, uma história escondida. Um segredo que paira em nuvens de silêncio e que poucas, raríssimas vezes, nos é dado escutar.

De qualquer forma, alegra-me lembrar, agora:

Alheias ao mundo, as meninas continuavam seu longo e malemolente beijo. A cena fez-me sorrir, satisfeita. E como se uma maresia impregnasse o ar, onde antes pesava apenas o mormaço, senti saudade de meus primeiros, ingênuos e descompromissados amores.

3 comentários:

Lu Gomes disse...

Vássia, Vássia
Vc. tem uma alma antiga, repleta de sensibilidade. Porém, por mais sublime que tenha sido a cena, não deveria ter se envergonhado do olhar "duro, frio, cortante". Seres, ditos humanos, como esses, devem, pelo menos, receber um olhar assim, para ajudá-los a compreender que a vida não deve ser circunscrita a reduzidas possibilidades.
Bjs.
Lu.

Chris Mayer disse...

Muito bonita a crônica. Necessária hoje para mim essa suavidade, levemente cortada por comentários de um ninguém. Mas me deu uma saudade grande dos beijos suaves, amorosos, quase ingênuos e sempre, sem nenhuma exceção, havia alguém para agredir grosseiramente. Obrigada, Vássia, pela doçura.
Chris

Márcia Corrêa disse...

Vàssia, o amor é pássaro das tardes. Parece inacreditável que ele ainda mova instintos tão primários alojados na doença do preconceito.