quinta-feira, 9 de abril de 2009

A moça na fila do ônibus


Hulton Archive


A frase era de indignação. “É tudo sem vergonha mesmo, morrendo e quer levar o resto junto!”, disse a mulher. “(...) E a essa hora da manhã”, emendou o senhor de gravata; “O que adianta tomar banho?”, quis saber a velhinha do crochê; “Tenho pena é dos filhos”, lamentou a garota da academia – e pronto, estava armado o zumzumzum.

Falavam da moça que aguardava, no terminal, o ônibus para a Lagoa. Certo que era jovem ainda – o suficiente para ignorar os desfechos trágicos –, mas se permanecia ali, em meio a toda àquela gente hostil, arrisco dizer que era por distração. “Esse já é o terceiro dela!”, informou a mulher ao meu lado, explicando depois: “Imagina que suportando isso desde a parada lá no bairro, quando ela se atracou com o primeiro. Depois, não satisfeita, pegou outro no cafezinho, tão logo chegou aqui, e agora taí com este!”.

Ah, a maldade humana! Quais monstros adormecidos carregam esses homens e mulheres? Que lembranças expurgam, sem saber, enquanto amaldiçoam a jovem na fila do ônibus para a Lagoa?

Sobre o monte, ao fundo, o sol ensaia uma manhã de verão. Estamos em abril e ainda assim, faz verão. Lembro que há um ano, por esta época, eu comemorava a chegada do outono. E falava sobre o cheiro do ar, das roupas de frio guardadas em malas, da casa e do espírito se preparando para o inverno.

Tudo, então, era ausência. Não somente a do companheiro que eu deixava para trás. Mas a ausência da rotina, dos pequenos hábitos que justificavam minha existência. Quantas angústias me assomaram nas noites e dias que seguiram à decisão? E o que dizer do medo, cada vez maior, que as palavras me abandonassem de vez?

Foram essas lembranças que me fizeram acompanhar as baforadas da moça que esperava o ônibus para a Lagoa. Porque eu me via nela. E sentia, com aquela crescente onda de intolerância, uma solidão antiga. A mesma que há um ano tomava conta de mim quando acendia um cigarro e percebia, pouco a pouco, as pessoas ao redor se afastando. As tosses forçadas, os olhares enviesados, um ou outro comentário desagradável.

E agora, vejam: cá estou eu sentada ao lado daqueles que antes me atiravam pedregulhos. Uma fileira extensa de homens e mulheres, num banco de cimento frio, retesando a face e soltando farpas à moça que aguardava o ônibus para a Lagoa.

Esse aparente pertencimento, no entanto, fere como feria antes a hostilidade. Porque não há como negar sua raiz fascista, não há como apagar o rastro de ignorância desta sociedade que ainda ontem associava o cigarro à idéia de inteligência, rebeldia ou charme. E que agora cobra aos fumantes, as contas públicas: “Abaixo o cigarro!”.

Com tamanha perseguição, é forçoso reconhecer que a vida ficou mais fácil sem o cigarro. Mas preciso dizer que não se toma impunemente uma decisão como esta, de abandonar companheiro tão fiel e ao mesmo tempo pernicioso. Prova disso são os quilos a mais na balança, as longas horas à procura desta ou daquela palavra, e essa solidão que entra sorrateira, em minhas madrugadas.

A voz rouquenha da mulher sentada ao lado não me desperta de todo – há uma névoa sobre mim. Então ouço longe, muito longe, um ou outro comentário a respeito da moça; do cigarro; da fumaça. Dessa fumaça que se mistura ao ar quente de verão e que absorvo, em silêncio, como se nela repousassem minhas mais antigas e caras lembranças.

É abril. E o outono segue apenas como uma idéia, um novelo de lã ocre que repousa em alguma esquecida sacola do universo.


2 comentários:

Andréa Zílio disse...

Adoro quinta-feira, receber suas crônicas...é sempre um prazer ao hábito da leitura.

Márcia Corrêa disse...

Não acho saudável essa fobia que tomou conta das pessoas, mas, que bom que você abandonou esse inimigo tão íntimo. Vivo de muito perto os estragos que ele promove, a vida que ele ajuda a matar lentamente, enfim...