quinta-feira, 30 de abril de 2009

Segredos Noturnos

Henri Matisse




Minha vizinha deixou o apartamento esta semana. Fiquei sabendo da notícia por acaso e não pude deixar de lamentar. É verdade que não nos conhecíamos, mas as paredes comuns têm o poder de aproximar as mais diferentes criaturas. Prova disso é que três semanas foram o suficiente para que eu soubesse – ou fosse capaz de imaginar – das labutas da moça. Não que eu tenha por hábito gastar meu tempo observando a vida alheia, de jeito algum. O problema é que parede é coisa que não se deve confiar. Foram feitas para guardar a casa, mas acabam por deixar escapar aquilo que muitas vezes é mais caro aos seus donos: os segredos.

Minha ex-vizinha, que chamarei de Kátia, tinha hábitos noturnos. Suspeitei disso na primeira noite em que dormi no novo apartamento e fui acordada, às três horas da manhã, pelos gritos de uma mulher que a procurava. Além de chamar pelo nome, a moça batia com algo metálico nas grades, nas correntes, nos vidros da janela. E tudo às três horas da manhã.

Acho tão sagrado esse horário que sempre imaginei que era no meio da madrugada que os anjos deixavam de nos vigiar e tiravam seus cochilos esquecidos da humanidade. Uma crença boba, saída de uma cabeça que coleciona ventos e que cultiva o hábito de catar palavras para buscar algum sentido a coisas tão terrenas e simplórias como o direito a uma boa noite de sono.

E porque sou muito apegada às coisas terrenas e simplórias, comecei a rezar para que Kátia acordasse. Meia hora depois, constatei – sentada na cama e com abajur aceso - que seu sono era imune a velas e orações. A amiga deve ter chegado à mesma conclusão, pois desistiu de Kátia, ligou o motor do carro e me deixou quieta no quarto já impregnado de insônia.

Quando o dia amanheceu eu estava um caco. E não bastassem as olheiras, o cansaço e a vontade de me afundar no colchão, tinha um novo temor sobre a minha cabeça: como seriam as minhas futuras madrugadas?

Para não ter surpresas resolvi me antecipar. Tirei duas horas depois do almoço e dormi tranqüila, certa de que nesse horário os anjos trabalhavam. Quando a noite chegou, eu estava descansada. Não tanto quanto Kátia que teve a sorte de passar o dia inteiro da terça-feira dormindo. Sabia disso porque só às quatro da tarde ouvi o barulho do ar-condicionado sendo desligado. Logo depois, a vizinha entrou no chuveiro e seguiu para a cozinha onde imagino ter saciado a fome com algo bem frugal, dado o silêncio dos talheres e pratos.

Lá pelas sete da noite, ouvi o barulho da panela de pressão – amanhã ela come feijão, pensei - e duas horas depois, os saltos finos descendo na escada de ferro. A descoberta de que Kátia não estava em casa e, portanto, ninguém viria procurá-la, devolveu-me a certeza de que naquela madrugada poderia rolar em doces sonhos nos meus lençóis.

Mas não foi bem assim. Acordei às cinco horas da manhã com os saltos finos na escada, o barulho de chaves que caiam, das portas sendo abertas e depois de pratos, copos, panelas. Kátia tinha acabado de chegar e estava comendo o feijão.

É claro que não consegui voltar a dormir. Levantei-me, fiz o café e sentei resignada na cozinha. Em que diabos, trabalhava Kátia? A primeira coisa que me ocorreu foi que devia ser enfermeira. Mas lembrei-me dos saltos - e enfermeiras não usam saltos! Pensei então em médica, mas que espécie de médica faria plantões noturnos diários e teria o dia inteiro para dormir?

Kátia, alheia às minhas perguntas matinais, seguia em sua rotina: Saía às 9 ou 10 horas da noite, voltava às cinco, dormia o dia inteiro mais uma parte da tarde e, dia sim, dia não, cozinhava feijão.

Tudo seguia tranqüilo e eu já estava quase me habituando a sair da cama no horário que Kátia chegava em casa. Aproveitava o silêncio para folhear revistas, beliscar alguma coisa sem a bagunça das crianças e pensar na vida. Fazia até planos de comprar em breve um par de tênis, assim poderia caminhar um pouco no parque, fazer exercícios, enganar o tempo.

Mas que nada! Comecei a perder a hora e só depois fui perceber que Kátia devia estar chegando mais cedo. Vai ver tinham acabado os plantões, pois minha vizinha pulava da cama antes das dez da manhã, tomava banho, cozinhava e falava sem parar ao celular.

Não sei ao certo quanto tempo durou essa quebra tão brusca em nossas recém-criadas rotinas, mas desconfio que tudo tenha a ver com o bate-boca que ouvi na semana passada entre Kátia e um homem que chegou num carro escuro, às duas horas da tarde, no apartamento vizinho. A discussão acabou em pancadaria e só não foi maior porque a amiga, àquela dos gritos na madrugada, apareceu rogando a Deus que afastasse o homem dali.

Deus deve ter escutado, pois a casa ficou num silêncio medonho. Nesse e nos dias seguintes. Pensei que Kátia tivesse resolvido tirar uns dias na casa da amiga ou, quem sabe, da mãe. Foi quando meu senhorio perguntou-me se eu não conhecia alguém que estivesse interessado em alugar um apartamento. Ele procurava por uma pessoa com referências “porque esta história só de fiador, não basta”, disse, contando com ares de tristeza que tinha descoberto que a antiga locatária não “era moça direita”. E pra completar, estava sem o “namorado” então achou melhor pedir que ela deixasse o apartamento “porque aqui a senhora sabe que só mora gente de família”.

É por isso que digo e repito: as paredes não são dignas de confiança.


*Escrevi a crônica acima em 2006, para o extinto Nariz de Cera. Saiu agora do baú por absoluta falta de tempo...

3 comentários:

Andréa Zílio disse...

Pela primeira vez estou vivendo a experiência de morar em apartamento, confirmo: as paredes não são dignas de confiança.
A localização do meu e a estrutura do prédio me dão vantagens de ouvir móveis sendo arrastados em manhãs de domingo. Como ninguém mora abaixo de mim, e somente uma pessoa ao lado, fico mais tranquila com meu silêncio ensurdecedor (risos). Abraços querida!
Andréa Zílio

MARCOS QUINAN disse...

Vássia,

Peço sua autorização para replicar no http://abaribo.blogspot.com/
Alguns textos seus que tenham a ver com nosso objetivo, a exemplo do que venho fazendo com muitos colegas, entre lá e veja como.
No mais, parabéns pelo seu trabalho.
Abraços

Márcia Corrêa disse...

Nem sei porque lembrei do romance "Todos os nomes" de José Saramago. Nele o personagem central invade um cartório nas madrugadas para localizar nomes aleatoriamente em registros e durante o dia investigar a vida por trás daqueles nomes. Uma crítica à burocracia, tendo como pano de fundo a vida por trás dela.