quinta-feira, 8 de abril de 2010

Infância de paixões

Patrick Baldwin


"A minha vida sempre foi orientada pelo fato de eu não pretender ser conde."
Rubem Braga


Acho que sofro com o mal de amor. Queria ter outra imagem para nomear os suores frios e a angústia que me toma as últimas noites. Mas não me ocorreu nenhuma outra além das lembranças que guardamos dos primeiros amores frustrados.

E quando falo em amores frustrados preciso esclarecer que não se trata apenas de nomes ou de pessoas. Mas de pequenas paixões que cultivei ao longo de minha vida e que, muitas vezes, deixaram-me a marca de uma traição. Como as aulas de balé que eu tinha, duas vezes por semana, com aquela velha senhora que já não me recordo o nome. Eu devia ter uns oito ou nove anos e morava com meus pais em uma casa de madeira, suspensa do chão por estacas, com quintal sombreado de jaqueiras e uma frondosa mangueira no portão de entrada.

A casa ficava próxima ao lugar onde eu tinha as aulas. Uma construção de dois andares, com garagem para três carros, varandas suspensas e um cimento branco que me oprimia tanto quanto os pés de uma criança a uma formiga. Minha professora morava ali. E duas vezes por semana, abria o enorme salão da casa para receber as alunas.

Elas chegavam de carro, algumas com motorista. Eu ia a pé com a minha mãe. Não era longo o caminho, mas tínhamos que descer uma enorme ladeira de paralelepípedos até dobrar na rua onde morava minha professora. O horário não ajudava muito. No meio da tarde, o sol queimava a pele e fazia escorrer pela fronte gotículas de suor. Eu pensava então nos cabelos presos no coque, na rede rosa que a professora fazia questão de verificar se estava corretamente colocada, no centro da cabeça. E pensava também nas colegas que chegariam frescas com o ar-condicionado dos carros. Os coques presos pelas mãos acostumadas das babás e a roupa impecavelmente arrumada e limpa.

Minha mãe acreditava que eu podia resolver algumas coisas sozinha. E talvez por isso, costumava me deixar no portão da casa da professora de balé. Ali eu procurava me recompor. Passava o dorso das mãos em minha testa para tirar os vestígios da caminhada, verificava o coque com a palma direita, puxava as meias e arrumava a saia. Subia as escadas levando na mão o coração palpitante, os olhos grudados nos degraus.

Procurava chegar sempre cedo. Achava menos aterrador estar no salão antes das outras meninas. Dava tempo de me olhar um pouco nos espelhos – coisa que só fazia quando o lugar ainda estava vazio – e admirar o enorme piano de cauda que ficava do lado esquerdo, próximo a uma das portas que se abriam para as varandas. O piano. Acho que aquele piano foi o primeiro sinônimo de classe e elegância que registrei na memória.

As aulas começavam pontualmente às três horas da tarde. Depois de nos indicar a posição e os movimentos que deveríamos repetir com perfeição, a professora sentava-se ao piano e começava a tocar Chopin - mas isso, só fui descobrir anos mais tarde, ouvindo na vitrola de meu pai as notas que tanto me apertavam o peito nas aulas de balé.

De todas as lembranças, porém, que guardo das aulas de balé, a mais dolorida é aquela que arrasto até hoje – quando sentada em uma confortável poltrona admiro a beleza dos movimentos de um espetáculo de dança. Foi uma tarde em que minha mãe chegou atrasada e saímos às pressas, ladeira abaixo, para a casa da professora. Por causa do tempo, minha mãe dispensou os segundos que costumava ficar apertando levemente minha mão antes de virar as costas e pegar o caminho de volta para casa. Subi dois em dois, os degraus. E o coração, até então trazido nas mãos, ameaçava pular caso eu abrisse a boca. E me deixar plantada ali, sem cor e batimento.

Quando cheguei na entrada, a música parou. As meninas olharam primeiro pelo espelho, depois viraram as cabeças para admirar a cena que fez com que estancassem, nas teclas do piano, as mãos da professora. Os pares de olhos deitados em mim faziam com que o salão ficasse maior do que eu estava habituada. Tudo parecia crescer a minha volta e até os passos da professora em minha direção lembravam a marcha, vista em um desenho ou filme qualquer, de soldados em campanha. Parada na porta, com o corpo dividido entre a obrigação de entrar e a vontade de sair correndo, a única coisa que eu pensava era que teria sido melhor faltar naquele dia.

A professora, sem talvez se dar conta do inferno que queimava minhas entranhas, deu um ou dois gritos. Disse que era inadmissível que eu chegasse àquela hora, que deveria pensar duas vezes antes de atrapalhar a concentração das outras alunas. A bexiga apertou e tive vontade de fazer xixi ali mesmo. Mas segurei. Só não consegui segurar as lágrimas que desciam grossas pelo meu rosto. Sem falar uma palavra sequer, dei meia volta e fui descendo os degraus e pensando em quantas vezes quis pedir a minha mãe que subisse comigo as escadas. Em quantas outras quis falar-lhe sobre os meus medos, sobre a sensação de estranhamento que eu sentia todas as vezes que eu entrava naquele salão, olhava o espelho, ajeitava o coque e esperava no canto, a chegada da professora e das outras alunas.

Quantas vezes? Eu não saberia dizer com certeza. Porque a memória, outra descoberta que fiz com o passar dos anos, é uma casa de espelhos, uma ilusão risonha e deformada do tempo.

P.S. Esta foi a primeira crônica que me lembro ter escrito (foi publicada em 2005, no extinto Nariz de Cera, site que o Lira Neto editava) e saiu agora do baú de coisas antigas por falta de tempo mesmo.

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