quinta-feira, 13 de maio de 2010

Quebrado o coração


Harvey Edwards


Leia ouvindo a versão de Maysa para Ne me quitte pas


Encontrei-a sentada na escada: seus olhos miravam o além das paisagens inexistentes, aquele nada que criamos no auge da fúria ou da dormência. Há quanto tempo estava ali? Não quis perguntar. Sentei-me ao lado dela e por alguns minutos permaneci também calada, na esperança de que o tempo a trouxesse de volta.

Do lado de fora do prédio, o barulho de um martelo. Os carros passam correndo a esta hora do dia e o sol desprega das calçadas um bafo quente. No andar de cima, o rádio está ligado no último volume. A mulher de baixo reclama, mas seus gritos são abafados pelo martelo, os carros, a música do rádio ligado no último volume.

Pensei em abraçar-lhe, mas o corpo está frio, distante, incomunicável – notei que suas unhas estavam comidas, os joelhos ressecados, que estavam grandes e negros os pelos das pernas. Então tiro a mecha de cabelo caída sobre seu rosto e, involuntariamente, deixo escapar um suspiro. O silêncio pesa sobre meus ombros, minha cabeça, as mãos que não sei onde deixar agora.

Uma fileira de formigas atravessa o corrimão, desce na parede lateral da escada, sobe os três degraus até o piso do 4º andar e segue em direção à lixeira do prédio. Sigo-as curiosa e atenta, como se fossem uma espécie de rendição. A salvação para a ausência, o silêncio estúpido e desalentador das palavras.

“Dá licença aí, dona”. O rapaz balança o corpo e passa no vão que abri entre nós duas. A escada é um território de almas perdidas, desamparadas, destituídas de um lugar seguro para chorar e sofrer.

Sim, o coração estava quebrado. E não precisava que eu entrasse no apartamento para adivinhar os pedaços espalhados no chão úmido, misturado à cinza velha dos cigarros que escapava do cinzeiro e às latas de cerveja esvaziadas na madrugada.

Como se ouvisse meus pensamentos, ela me olha – e ainda que nossos corpos permaneçam inertes, nesse instante, nos abraçamos. Deixo-a chorar de mansinho, enquanto enxugo, sem que perceba, também as minhas lágrimas.

O som do martelo diminui à medida que aumenta nosso silêncio. O caminho de volta tem a cor, o cheiro e a forma dos abismos.


E termine, para começar de novo, com Piaf cantando Non, je ne regrette rien



2 comentários:

Márcia Corrêa disse...

As escadas simbolizam a incerteza. Pra onde ir? Também as ascenção ou a decadência de uma situação ou sentimento. Sempre que sonho com escadas está relacionado a alguém que já partiu para outro plano. Os encontro subindo, descento, assim sentados sem rumo...

Sra. D, disse...

Ai, Vássia! Que maravilha te re-encontrar aqui,toda!
Ando me deliciando com tudo por aqui, revendo as meninas, já crescidas, nas tuas palavras, do rock da anais ( figurissíma) às preocupações pré adolescentes da clarinha.
Virei assídua, ansiosa pelas próximas quintas...

grande abraço,

Nathalia