quinta-feira, 10 de junho de 2010

Adeuses


Richard Calvo

Para ler ouvindo Madeleine Peyroux cantando Careless Love, de Janis Joplim

São 8 horas da manhã. Acendo o terceiro cigarro do dia enquanto penso em mais um sonho que enterro. Lembro-me, então, da comadre que há algumas semanas viu-se obrigada a enfrentar a dor de ver descer à terra, o corpo do pai. Seu Sidônio tinha 89 anos e uma energia invejável para tocar gaita nos aniversários e reclamar, com humor ácido e inteligente, das pequenas coisas que tanto nos aborrecem ou consomem.

Não quis o destino que nos encontrássemos pessoalmente, ainda que para mim sua figura surja sempre com a de um velho conhecido, pois várias são as histórias que dele acompanhei nos últimos dez anos. Saber, portanto, que no grande sobrado carioca há o vazio de sua presença me desconforta. Sinto como se um pedaço de vida houvesse sido roubado também de mim: aquele no qual eu estenderia aos familiares de uma grande amiga, o carinho que tanto recebo.

Olho para o céu azul e percebo que nele não há mais o rasgo de nuvem que minutos antes eu havia enxergado longe, como que pendurada. Assim é a vida. Essa brevidade cujo sinônimo bem poderia ser susto.

Não conheço, ainda, a dor do adeus na morte. Mas posso falar do desespero de enterrar os vivos – Ah, como é grande e profunda essa dor! Porque para a morte, ainda que tentemos fugir, há todo um ritual de abandono: é preciso arrumar o corpo, providenciar os papéis, o caixão. É cansativo, eu imagino. Mas penso que talvez funcione também como um tempo para diminuir o impacto da perda – como se pudéssemos, nesse curto espaço, nos acostumarmos com a ideia da partida do outro.

Com os vivos não ocorre o mesmo. Temos que enterrá-los respirando ainda. E seus cheiros, vozes, manias e imagens não são apenas lembranças. Outro problema é que para os vivos enterrados o tempo quase nunca é suficiente. Porque o susto, nesses casos, é um revés: nos desfazemos da existência concreta dessas pessoas e, um dia, sem mais nem menos, elas surgem à nossa frente nos atirando na face o pó que julgávamos ter atirado ao chão do esquecimento – enterrar os vivos é como dar amém aos fantasmas, nada garante que não seremos obrigados a esbarrar com eles em esquinas, shoppings, cinemas, restaurantes, aviões.

Será esta a razão de meus cigarros? Sim, voltei a fumar. Depois de dois longos e (in) tranquilos anos.

Não por acaso a saudade do cigarro me bateu no mês de abril. Abril tem dessas coisas. É, pelo menos para mim, um tempo que semeia mudanças – como se nele eu arrumasse não só a casa, mas também a alma para o amanhã.

Vejam que eu bem poderia dizer que a vontade de fumar chegou após a ressaca ter invadido a minha praia, aquela que escolhi para o sonho idílico de uma vida junto ao mar. Mas seria mentira. Pois veio antes, como um sussurro de vento: Corre ao varal e tira tuas roupas. É hora de partir.

Enquanto escrevo acompanho o filete de fumaça que se desfaz no ar ao mesmo tempo em que arde o pequeno sol coberto de cinzas que logo sujarão o cinzeiro. Não tenho intenção de pensar neste momento nas centenas de substâncias tóxicas que inalamos eu e meu pulmão. Porque minha alma respira agora e é dela que dependo para construir novos sonhos.

De qualquer maneira, caro leitor, não entenda este suspiro como uma apologia ao cigarro. Mas como uma dessas deliciosas fraquezas que de tão humanas chegam a ser sublimes em sua verdade.

Sim, a vida é breve. E continuará sendo misteriosamente breve independente da fumaça.



3 comentários:

Unknown disse...

Demais Vásssia... muito bom esse jogo com o tempo da narração.
Adoreii

Um beijo
Flávia

Lu Gomes disse...

Você é uma mestra das palavras e ainda que pense que não, é também, na solidariedade e carinho.

Anônimo disse...

Oi, querida, Mel publicou esta crônica no site. Veja os comentários:

Oi Vássia, delícia de crônica
Comentário Enviado Por: Albertina Pacheco Em: 09/9/2011


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Vássia, minha querida Vássia, , sei das dificuldades de enterrar vivos. Há 18 anos tento enterrar uma alma que insiste atravessar meu caminho. É uma força estranha... Com fumaça, ou sem...
Comentário Enviado Por: Leila Jalul Em: 09/9/2011


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Váááááássia, "tirou daqui"... Amei
Comentário Enviado Por: Keila Azevedo Em: 09/9/2011


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O que mais admiro em Vássia é o estilo, cortante, irônico e corrosivo. Uma estilista.
Comentário Enviado Por: william porto Em: 08/9/2011


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Muito massa
Comentário Enviado Por: Gina Em: 08/9/2011


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Vássia, achei uma crônica linda
Comentário Enviado Por: Yole Em: 08/9/2011


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Vássia, uma crônica reflexiva de muita beleza
Comentário Enviado Por: Kadu Em: 08/9/2011


Grande abraço

Leila Jalul