quinta-feira, 3 de junho de 2010

Sobre pronomes e cartas


No meu tempo, a gente aprendia a escrever cartas no ginásio. Tínhamos que redigi-las a diferentes destinatários – pessoas da família, amigos e autoridades como o padre, o reitor ou o prefeito da cidade. A tarefa fazia parte das aulas de português e o objetivo era um só: garantir que saíssemos dali sabendo usar corretamente os pronomes de tratamento, bem como distinguir as nuances entre a escrita de uma carta para um conhecido e outra a eminente figura.

Outro exercício muito comum, aprendidas as regras do bem escrever epistolar, era a redação de telegramas, bilhetes e requerimentos típicos da burocracia brasileira. Tenho a impressão de que veio daí minha aversão aos formulários, declarações, solicitações – é vergonhoso o que vou confessar, mas todas as vezes em que sou obrigada a redigir coisas do gênero é como se estivesse saltando de uma ponte, sem pára-quedas.

Sim, é verdade que não sei preencher formulários e um requerimento vem sempre acompanhado de dois analgésicos. Mas minha incapacidade em lidar com tal escrita nada tem a ver com o desempenho de meus professores. Muito pelo contrário. Pois graças a eles acabei tomando gosto pelas cartas e quando cheguei à adolescência fiz do hábito de escrevê-las a salvação para momentos nos quais a palavra não saía fácil. Foi assim que comuniquei meu pai sobre os primeiros abismos que enfrentava; chorei à minha avó e aos tios as saudades de uma infância que não voltaria mais; e registrei, para mim mesma, aflitivos pensamentos amorosos.

Tudo bem que muitas cartas acabaram nunca chegando a seu destino (porque entre escrever e postar há uma distância às vezes intransponível), mas todas foram escritas na intenção de serem recebidas pelo outro. Tantas e sobre tão diversos assuntos que pensando agora nelas posso dizer sem exagero: atravessei o final do século passado escrevendo cartas. E, de alguma maneira, é bem possível que parte do que sou hoje esteja espalhada por lugares desconhecidos, caixas de sapatos abandonadas em quartos escuros e úmidos, pastas velhas, sacos plásticos, gavetas empoeiradas.

Que saudade de ontem! Do suor nas mãos ao ouvir as palmas do carteiro, da alegria de pegar o envelope, rasgá-lo cuidadosamente, retirar as folhas finas, escritas a caneta, e correr a um canto solitário para ler em silêncio a carta recebida.

Agora o que me chegam são os e-mails. Alguns engraçados, outros tristes, noticiosos. A maioria texto rápido, quase telegráfico. Aqui e acolá uma escorregadela na utilização dos pronomes de tratamento – professores, se cartas não são mais escritas então precisamos ensinar as regras do e-mail! –, como um conhecido que ressuscita a linguagem empolada; alguém que você nunca viu e que te trata como se fossem velhos parceiros; um parente que se despede com frieza; uma amiga que simplesmente não te responde e ponto.

Hoje, por culpa do e-mail, sou capaz de perder horas se tiver que enviar, para algumas pessoas , um texto ridículo de três linhas. Tudo para evitar que eu cometa alguma gafe, pois quanto menor é o numero das palavras, maiores são os riscos das entrelinhas – são nelas que mora a má interpretação.

Por essas e outras insisto em escrever cartas. Não tão longas quanto as antigas, mas extensas o suficiente para dar conta do que sinto e breves o bastante para não aborrecer o destinatário – já que as mando por e-mail.

Isso é um crime, eu sei. Mas acredito ser menor do que a inabilidade com as palavras.

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