quinta-feira, 17 de março de 2011

A casa de Monte Alegre

Henri Matisse

Nunca soubemos, de fato, dos cheiros que guarda a casa. E ainda assim ela faz parte de nossas vidas. Era como uma promessa, uma maneira aparentemente fácil de resolver os problemas que surgiam: Falta máquina de lavar roupa ou de costura? Ferro de passar? Serra tico-tico? Batedeira? Furadeira? Iogurteira? Secadora? Maçarico? Luneta? Lupa? Prateleira? Toca-discos? Guarda-pó? Banco? Cadeira? Mesa? Colchão? Ah, tudo tinha na casa de Monte de Alegre! E em dobro.

No meio da madrugada, de manhã ou no fim da tarde, era sempre uma repentina alegria vislumbrar, na casa de Monte Alegre, a solução para algumas de nossas necessidades. E se digo repentina é porque o sentimento se desfazia tão logo éramos lembrados da distância que nos separava da antiga e espaçosa construção. Ou mais precisamente de nossas contas bancárias – sempre aquém do desejo de buscar, em Monte Alegre, as relíquias, quinquilharias ou objetos que poderiam transformar nosso cotidiano sonhador.

Frente à urgência de materializá-la, peguei-me muitas vezes construindo paredes, ao contrário do poetinha. Desprezei salas, corredores, quartos, banheiros, varanda. Fixei-me apenas na ampla cozinha, com fogão à lenha, panelas de barro, bronze e uma mesa tão grande quanto à da Santa Ceia. E no galpão. Que surgiu, para mim, como um museu particular. Um lugar mágico e proibido, de onde podem escapar segredos, confissões, fantasmas.

Da última vez que lá esteve, o bom e velho amigo – a quem, por direito, parte da casa pertence – trouxe-me triste notícia: os cupins deram fim ao exemplar de um livro raro, o qual me foge agora o nome. Um sobrinho ou sobrinha andou também remexendo suas caixas, das quais sentiu o vazio. Gravuras, vinis, documentos que se perderam. E não fosse a memória do amigo, eu diria para sempre.

Não lembro se algum dia eu cheguei a confessar-lhe, mas muitas vezes imaginei-me como um de seus sobrinhos, fuçando caixas, abrindo pastas, malas, caixotes. Aventurando-me entre as teias que enfeitam as altas prateleiras, os armários em madeira de lei desta que abrigou, no auge da economia cafeeira paulista, uma beneficiadora de café.

É que gosto de coisas velhas. Amo as caixas, os envelopes, os papeis manchados pelo tempo. Sinto impulso de desvendá-los e, simultaneamente, freia-me o desejo de estender a sensação de mistério, de silêncio. Como o silêncio dessa casa que, com o tempo, criou ares de encantada chegando quase a virar uma anedota entre os amigos.

Ou o silêncio que longe de representar o vazio, fala de vastidão. Bruma que me permite, mesmo sem nunca ter pisado no cimento frio ou nas tábuas de madeira, sentir – na luz rarefeita do lugar que construí –, o cheiro da casa de Monte Alegre.

5 comentários:

Gil Maulin disse...

são estas as nossas primeiras e últimas casas.

Unknown disse...

NAO SEI SE ESTA É A CASA DE MINHA mONTE aLEGRE TB. MAS E TUDO MUITO ENCANTADOR COMO MINHAS MELHORES LEMBRANÇAS.

Fernando disse...

Virei mais um memoriado visitador da casa.

eduengler disse...

Leca, é sim a casa de nossas melhores lembranças.
Esta que foi o lar temporário de muitas pessoas, que serviu de recepção a ilustres personalidades brasileiras, que inspirou poesias, pinturas de quadros, ebulição de idéias e levantes, de carnavais amorosos e amigos, de quintais com uvas e laranjas, de aromas frutais e graxa; sim esta casa é minha memória não ilusória, que me fez um passado feliz.

Vássia Silveira disse...

Gil, Leca e Fernando: obrigada pelos comentários e a visita ao blog. Dú, eu tenho uma inveja danada de quem conheceu ao vivo e a cores a casa de Monte Alegre. A que construi na memória é ficional, mas baseada em tantas histórias que ouvi de você. E no belo jardim cujas fotografias eu guardo frescas na lembrança.