quinta-feira, 3 de março de 2011

Rascunho

Leonardo Da Vince

Se eu tivesse que responder à pergunta “O que você aprendeu de mais importante nas últimas quatro décadas?”, eu diria: todo texto tem seu rascunho. E quando penso nessa resposta não me refiro aos documentos abertos e descartados na tela do computador ou às folhas de papel lançadas na lixeira – eu ainda as uso em algumas ocasiões. Mas nos rabiscos, arranjos e alterações que vão surgindo enquanto traço àquele que, mesmo despido de genialidade, será sempre um texto único: o da minha vida.

Vejam que acabo de escrever o parágrafo acima e, ao lê-lo, não tive dúvidas do quanto é piegas a analogia. Ainda assim, resolvi mantê-la. O que pode me custar seu desinteresse imediato, leitor. Ou, ao contrário, sua curiosidade e, quem sabe, até mesmo uma ponta de generosidade: É possível que ela melhore esse texto!

Não sei ao certo em que idade começou minha amorosa e aflitiva relação com as palavras. A imagem mais antiga que guardo é de uma menina sentada no chão de madeira, folheando gibis da Turma da Mônica e criando histórias, até realmente ser capaz de lê-las. Tenho uma vaga lembrança da casa e, pelas contas que faço – nem sempre confiáveis –, eu não tinha mais do que cinco anos. Não sei se inventei ou é verdade: mas acho que aprendi a ler antes de entrar na escola. E a culpa foi do Maurício de Sousa.

Desde então, persigo-as inquieta. E quando me fogem, o que acontece com mais frequência do que eu gostaria, sinto-me nua e solitária. Porque são elas, as palavras (ou as histórias?), que me vestem e me explicam.

Talvez seja loucura imaginar que a vida, a minha vida, reflete essa incansável busca. Mas pensei nisso nos últimos dias quando, após vários silêncios e cigarros, me vi traçando um novo começo para o mesmo texto. Ah, como eu amo mudanças! Minha filha mais velha que o diga: lembro que quando chegamos à paradisíaca praia da Armação – hoje enterrada pelo mar –, ela virou para mim e disse “Mãe, agora chega de mudar, né?”. Eu poderia ter respondido simplesmente “sim”, mas meu espírito falou mais alto que a diplomacia e acabei confessando-lhe que o bom mesmo seria ter um trailler, uma casa móvel para ir e vir quando desse vontade.

Tanta honestidade custou-me o choro dela. E uma promessa que segui à risca nos últimos quatro anos: nada de mudanças. Mas, imagine: um pássaro na gaiola, um poema sem leitor... Não parecem sinônimos de incompletude?

Pois é atrás do meu poema que abro novamente as asas. E ainda que para muitos isso soe como uma loucura, posso garantir que é o mais lúcido de todos os rascunhos traçados por mim até hoje.

Mais maduro, meu peculiar e único texto ganha contornos que extrapolam as tentativas iniciais. Longe de ficar pronto, ele se liberta da necessidade do fim para gozar a experiência da criação. Com a mesma liberdade que exercito quando me falham os verbos e os apago; quando me enchem os adjetivos e abandono-os; quando me sobram as vírgulas e as retiro.

A novidade, agora, é que percebo, no olhar de cigana de minhas filhas, uma co-autoria.

6 comentários:

Marcos disse...

Vássia,
Parabéns pelo texto!
Na verdade eu também já perdi as contas de quantas vezes mudei de lugar, tanto na mesma cidade, quanto para cidades diferentes... sim, perdi a conta.
Então como as palavras que formam o texto vão se encaminhando na frase dando sentido ao que queremos falar, nossas vidas caminham junto com aquilo que somos e falamos, ainda que "despido de genialidade" o texto fica assim mesmo, porque somos assim e não temos como mudar, seja por acomodação, falta de inspiração, falta de genialiadade... somos assim, nós os textos, a vida... somos sós.

Montezuma disse...

Gostei muito, Vássia. identifico-me com esse precioso relato que traduz alguns hiatos. Abraço fraterno.

Cristina Lopes disse...

Gostei muito e passei a seguir.
Abs

Vássia Silveira disse...

Marcos, Montezuma e Cristina: obrigada pelos comentários. Vamos ver se ao menos os hiatos com as palavras diminuem e eu consigo voltar a escrever Toda Quinta rsss. Abs

Carlos Baldner disse...

Ao choro da filha mais velha adiciono o meu. Não querida Vassia,não é a honestidade que machuca, mas a constatação da impossibilidade das certezas irracionais. Quando eu te digo até amanhã estou também te prometendo que amanhã estarei vivo, uma absurda certeza.Vinicius falou do amor eterno enquanto dura. O rascunho é rascunho de outro rascunho,pois sempre poderemos modifica-lo ou lapida-lo

Vássia Silveira disse...

Baldner,querido amigo! Saudade de nossas conversas e de sua generosidade com as minhas idiossincrasias.