quinta-feira, 21 de abril de 2011

Ah, Dorotéia!

Guilherme K. Noronha

Sento na beirada do muro enquanto a fumaça se espalha na alma e no vento. Há um silêncio matutino acariciando os pensamentos, ainda sonolentos a essa hora do dia – são pouco mais de 8 da manhã. Minha intenção é despretensiosa: quero deixar-me invadir pela solidão do vício e da contemplação ao mesmo tempo em que recorto as sombras das árvores, destacando delas sua essência imaterial.

Sinto que poderia alongar o prazer do cigarro, mas uma flor branca flutuando em linha reta tirou-me da letargia. A cena me faz levantar e caminhar alguns passos. O suficiente para perceber sob as pétalas o corpo vermelho de uma formiga.

Dorotéia, este é o nome de mulher que resolvo lhe emprestar. Sigo-a em seu trabalho hercúleo: O peso parece superior ao que pode suportar, mas ela permanece firme e continua. Minutos depois, vejo-a apoiar o fardo no chão e aproveito para observar o movimento ao redor. Atrás dela há uma fila quase simétrica: uma, duas, três, quatro, cinco, pelo menos vinte outras parceiras.

“Como são rápidas!”, penso. E então me dou conta de que perdi Dorotéia. Com a frustração pesando em minhas costas, deixo o olhar percorrer o calçamento na tentativa vã de destacar em meio às flores flutuantes, o corpo frágil de Dorotéia. Mas assim como as pétalas brancas, as formigas parecem todas iguais.

Ando uns cinco metros e paro embaixo da árvore (É preciso refazer o trajeto de Dorotéia, compreender-lhe o espírito e a necessidade de seu febril cotidiano). Há um tapete de miúdas flores, sombra, brisa. E um vai e vem ininterrupto.

Caminho equilibrando o olhar e os passos para não tornar-me uma assassina. Sei que sou uma intrusa e esta constatação não se dá após medir a relação desproporcional entre elas e eu, mas ao notar o ritmo acelerado com que fazem flutuar as flores brancas à medida que me aproximo da fila.

Quero dizer-lhes que não sintam medo. Não tenho intenção de tomar-lhes o provimento ou roubar-lhes a ocupação. Mas a elas não importam meus pensamentos, minha precaução.

Contento-me, então, em acompanhá-las à distância, seguindo-as até o muro onde há pouco, estava sentada. E já sem esperanças de reencontrar Dorotéia, deixo que a fumaça do novo cigarro preencha o vazio deixado por ela.


PS. Obrigada, Guilherme, por ter topado tirar a foto e permitido que eu a usasse.

7 comentários:

Gil Maulin disse...

me lembrou de marcovaldo... um personagem de italo calvino! bonita dorotéia. bonita foto tb!

Felipe disse...

Me encantó.
Besos.

Lenir e Marinho disse...

Mais um texto impecável da dona do Blog. Boa Páscoa para você e família. Lenir e Marinho, diretamente do Rio de Janeiro.

Lu Gomes disse...

Que bom é quando conseguimos nos encantar com os pequenos acontecimentos do dia-a-dia (os grandes ficam até irrelevantes). Ah, laboriosa Dorotéia!

Eliane Rudey disse...

As vezes sinto as pétalas que carrego pesadas demais, quase insuportável, como no caso da destemida Dorotéia. Porém, tem sempre uma for(a)miga por perto para ajudar na caminhada.

Jalul disse...

Ora direis, nomear formigas, certo perdeste o senso, tresloucada amiga... Mas vos direi, no entanto, que só quem ama tem olhos capazes de ver e nomear formigas... E estrelas, também!
Beijos no teu coração de mulher sensível.
Leila Jalul

Raphael Dimitri disse...

Estou me deliciando com seus textos.

Abraços,
Raphael