quinta-feira, 4 de agosto de 2011

O voyeurismo, a máfia e o calor de 40º

Imagem encontrada aqui

Ia fazer uma pesquisa para começar com alguma decência esta crônica. Mas como não tive tempo, deixei de lado a ambição de falar sobre a origem morfológica, semântica ou antropológica do termo voyeurismo, resignando-me com a ignorância e a superficialidade de pensamentos que me assomam os dias, especialmente quando ando pelas ruas da cidade.

Sei lá explicar o motivo, mas gosto de andar. Meu espírito se agita ao percorrer as vias cobertas de paralelepípedos, asfalto ou mesmo o barro seco. Ao observar os transeuntes, os picolezeiros, as tiazinhas com suas sacolas e netos, os jovens casais, os ciclistas, os garis. E também os motoristas com suas máquinas assassinas.

Devo inclusive a estes, o título e o mote do texto da semana. Foram os motoristas e não apenas as escuras películas de seus veículos que me levaram a passear, nos últimos meses, pela Cosa nostra siciliana.

Sim, caminhar entre os muros e a pista da cidade é quase como ser personagem da famosa trilogia de Coppola. Ora, é claro que aqui será necessário descontar minha natural atração pelo exagero ficcional.

Mas pare um pouco e pense – use a imaginação, caso não costume andar a pé por Rio Branco: não é assustador perceber que aquele carro negro, aquele que quase te atropela ao estacionar na calçada ou avançar a faixa de pedestre, é uma máquina sem identidade maior que os números da placa? Não lhe provoca angústia pensar que ali poderia estar um grupo de mafiosos, com armas na mão, prontos a atirar? Quem sabe um psicopata ou uma loira louca e enfurecida? Não lhe provoca pânico desconhecer os traços daquele que bem poderia ser seu assassino? Não ver a cor de seus cabelos, sua face, os olhos, a vestimenta? Pois então!

Por outro lado, acompanhe meu raciocínio, devemos a essas máquinas embrulhadas com insulfilm a estranha sensação de observarmos a vida na clandestinidade, como se a janela do mestre Hitchcock se multiplicasse, despencando do prédio cinza. Ou pior: a de sermos constantemente observados. No primeiro caso, aviso que não é necessário possuir um desses veículos – basta aceitar a carona de um amigo, de um colega de trabalho ou pagar uma corrida de táxi. E no segundo, insisto, é só sair e se aventurar como pedestre.

De uma forma ou de outra, persiste o desconforto. Ao menos em mim. E veja que não deixa de ser um interessante exercício construir possibilidades acerca do desconhecido. Tanto que graças aos vidros cada vez mais negros dos carros da cidade tenho construído, nos cadernos da mente, as mais bizarras criaturas e situações. Mas isso daria outra crônica!

De qualquer maneira, e porque não me resta mesmo mais tempo para os devaneios, resolvi exercitar a generosidade. Procurei, então, justificativas para a complacência da lei e a única explicação que encontrei foi a do calor de 40 º graus, o câncer de pele, a claridade excessiva, o desconforto do sol queimando a pele.

Isso me faz pensar que nós, herdeiros amantes do espírito flâneur, devíamos seguir o exemplo e sair às ruas com os corpos cobertos não com tecidos, mas com uma grossa, escura e impenetrável película. Como os insulfims nos vidros dos carros da cidade.

2 comentários:

eduengler disse...

Descondescendendo da atitude maternal de considerar proteção solar a coisa toda, parto do princípio, que na mesma loja, qual vende a película escura, vende uma transparente com proteção UV; enfim, fico com a oclusão social principiada no descaso alheio.

Cyntia Sussuarana disse...

Olhar pelos olhos alheios é sempre um ver precipitado, é incerto e confesso que me seduz. Bom texto. Abraços.