quinta-feira, 1 de setembro de 2011

A vida dos outros

José Bóia

Tomei emprestada a tradução para o português do filme alemão Das Leben der Anderen para falar um pouco do rumor. Conheci-o cedo, tanto que aos 12, muito antes da idade na qual nós mulheres somos apresentadas a maledicência alheia, eu já sabia o peso da língua dos guardiões da moral e do costume.

Eu era então o que as mães de boa família chamavam de moleca de rua: amava brincar com os meninos, empinar pipa, subir em telhados, tomar banho de chuva, jogar bola, pular muros, apertar campainhas e sair correndo enquanto ouvia os vizinhos soltando impropérios como “Se pego essa desgraçada arranco um pedaço da orelha!”.

Mas o gosto pela travessura não seria o único problema a enfrentar. Essa descoberta veio junto aos primeiros sopros de inquietude do coração, como os amores platônicos e o beijo nervoso, quase indelével, roubado na brincadeira da pêra, uva ou maçã.

Ah, como isso soava imprudente aos lares convencionais: “Não quero mais lhe ver brincando com essa menina!”, diziam as encantadoras senhoras do bairro de classe média. Ora, era até compreensível. Afinal, o que esperar de uma filha de pais separados, que passava o dia todo sozinha, enquanto a mãe trabalhava? Tempos difíceis aqueles!

Ficaram guardadas muitas imagens dessa época – algumas duras o suficiente para dar fim a caixas e caixas de lenço de minha analista. Como a daquela fina senhora que costumava barrar a minha entrada na luxuosa casa onde morava uma amiga.

Por muito tempo, doeu-me a recordação. Não pela ignorância. Mas pela ironia do destino que me fez constatar, tempos depois, que a família passara a vender sanduíches na calçada daquilo que havia sido para mim um palácio impenetrável.

E porque na vida o final da história nem sempre é melífluo como sugerem os contos de fada, soube também dos descaminhos de algumas das melhores promessas de moças sérias da cidade. Dessas que jamais brincavam com meninos, pulavam muros, jogavam bola, tomavam banho de chuva, subiam em telhados, empinavam pipas ou se apaixonavam pelo colega de sala.

Ah, como é triste a mediocridade! Que pouca glória há no medo das pequenas transgressões que todos nós devíamos poder experimentar ao menos uma vez na vida... E falo isso sem receio de que minhas filhas leiam esta crônica e me joguem um dia na face: não é você a defensora da liberdade?

A elas e aos que esperam de mim alguma subserviência à hipocrisia, eu respondo: sim. Defendo, sem medo, a liberdade. Por isso, entre outras coisas, deixo minhas filhas faltarem aula quando se sentem tristes ou incompletas – livrando-as do subterfúgio da mentira. Deixo que brinquem, que corram e se sujem, voltando depois suadas e famintas. Que sonhem ou façam planos sobre o primeiro amor, o primeiro beijo.

Procuro mostrar-lhes também que é necessário ter coragem para ignorar boa parte dos rumores e julgamentos alheios – afinal, nenhuma moeda social deve valer mais que a nossa integridade.

Tudo isso tem riscos, claro. O menor deles é a possibilidade de um dia eu ter que explicar a um vizinho ou diretor de escola que não educo minhas filhas para o sucesso, mas para a felicidade.

E para a verdade de ser quem são, seja lá como for.


8 comentários:

Anônimo disse...

Estava aqui na espera, lendo nada de nada. Toda Quinta é esperada com uma quase ansiedade. Acho que fico mesmo é esperando por ti, mas, vale o escrito e a escritora.
Menina, que "dilícia" de crônica!
Sinta-se abraçada, acarinhada e bem recebida aqui na minha casa. Quem era a bruxa, hein? Lazarenta!!!! rsrsrs

Leila Jalul

Wesley Diogenes disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Wesley Diogenes disse...

Felizes são suas filhas que não precisam viver na clandestinidade que precisa reinventar as mentiras atuais para fazer suas travessuras, a partir do momento que é dada a liberdade um peso grande de corresponder com a própria consciência o que é o certo e o errado é criado e de forma individual e não obrigatória se constrói. Acredito que não é a imposição medíocre e retrógrada de valores idiotas que mães gostam de mostrar para que vizinho vazios e frustrados apreciem e diga que aquela alí sim é uma 'boa moça'... como diria dosto "Oh céus me conceda indulgências com os imbecis.

Essa crõnica, texto ou o que for, li em um momento extremamente especial que é o de embriaguez, como muitos dizem são os ébrios os sinceros e nada mais sincero eu posso dizer nesse momento é quão surpreendente foi pra mim tudo aqui escrito. Sei lá de uma certa forma fiz uma regressão da minha infância e de um bom período da minha vida.

Hoje depois de muitas conquistas, que sempre foram individuais, com orgulho posso dizer q vivo as fugazes alegrias do dia-a-dia como uma criança com a venda nos olhos, mas com o sorriso estampado no rosto bricando de cabra-cega.


ah vássia releva tudoo é que sei lá deu vontade de comentar depois de ler essa crônica que chegou no meu e-mail de madrugada. :D

Gil Maulin disse...

bonitas formas de falar dessa tal liberdade!

Anônimo disse...

QUERIDA CÁSSIA, EIS OS COMENTÁRIOS DA VIDA DOS OUTROS NO SITE DO LIMA COELHO

A vida dos outros sempre nos interessa. O Voeirismo parece ser atávico no ser humano
Comentário Enviado Por: ULisses Em: 04/9/2011


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Vássia, me afino muito com tuas reflexões
Comentário Enviado Por: Daniela Vieira Bacelar Em: 04/9/2011


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Humhum que divino
Comentário Enviado Por: Nara Em: 04/9/2011


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Uma crônica muito bem articulada
Comentário Enviado Por: Vitória Caldas Em: 04/9/2011


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Bem pensado e escrito. Muito
Comentário Enviado Por: Zilá Em: 04/9/2011


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Oi Vássia, gostei
Comentário Enviado Por: Olinda Em: 03/9/2011


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Tinindo de boa
Comentário Enviado Por: Graciete Lobão Em: 03/9/2011


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Você, Vássia, ´´e ótma na escrta e arretada nos temas.
Comentário Enviado Por: william porto. Em: 03/9/2011


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ameeeeeeeeeeei
Comentário Enviado Por: Márcia Lopes Em: 03/9/2011

LEILA JALUL

Anônimo disse...

Vássia
Vássia
Vássia

Mil vezes Vássia

Vássia é Vássia

Cássia é Cassia.

Leila Jalul

Blog da Tiana disse...

Que sábias e corajosas palavras Vássia. Bebi e saboreei cada uma, como mãe que sou, aliviada por saber que ainda existem crianças felizes, como as minhas. E hoje, terei o maior prazer em gastar mais tempo limpando a sujeira que elez traram na roupa cheia de terra, mais com a limpeza e a alegria na alma, por saber que estão viendo de verdade.
Beijos querida e até quinta!!!
Tiana Medeiros.

Fernando disse...

Ganhar tempo é o que sinto quando leio as coisas tuas, com ou sem totais concordâncias, com ou sem reparos. Por gostar de escrever reflexões, leio também a forma e a tua é 'incopiável', variada, elegante, inteligente. Eu não usava saias nem maria chiquinha, tinha a benesse de ser apenas mais um menino brincando entre os meninos. Curioso como lembro de poucas meninas brincando conosco. Curioso como todas as lembranças são boas. Curioso como teria hoje muito orgulho se pudesse dizer que fui o primeiro beijo de uma delas. Essa sensação de saber hoje que aquelas meninas eram livres, alegres, inteligentes, nasceu no teu texto confessado. Saber naquela época o que percebo hoje teria dado a mim, menino entre os meninos, provavelmente e pelo mínimo, a consciência de respaldar e incentivar a presença de 'molecas de rua' naquelas turmas.