quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

No restaurante

Gustav Klimt

É possível que ele seja alto, esguio, com olhos cor de seriguela e os lábios, pitanga. O tempo entranhado nos fios que emolduram o rosto moreno, as mãos longas, os dedos tortos, três deles tamborilando um samba antigo, um bolero, uma bossa, enquanto ela sorri.

Do outro lado, a silhueta feminina fere a trivialidade do restaurante. Os cabelos longos escorrem o ébano da noite fria e as coxas – quem pode afirmar a razão? – roçam nervosamente o silêncio sob as pernas da cadeira. Seu colo, ombros e braços seguem inclinados, como se pressentissem o odor de almíscar.

Observo-a de longe. Ela tem as espáduas voltadas para mim, o que de certo modo diminui o desconforto em me deixar levar pela curiosidade. Seus sapatos são pretos e gastos, a roupa é sóbria, um vestido escuro na altura do joelho. Distraio-me acompanhando seus gestos, como se pudesse adivinhar a frase, o verbo, os adjetivos soltos.

Mas como se acabasse de ouvir um aviso amigo, ela gira o corpo em minha direção. De suas pupilas saem faíscas que alcançam e queimam a minha face.

Sinto vergonha, disfarço. Baixo a vista e procuro calçar as sandálias que deixara caídas no chão – Ah, quanta desdita me é reservada na ânsia de captar o imponderável! Segundos depois volto à posição inicial me policiando para concentrar-me no vai e vem das garçonetes, na comida, no menino que busca a atenção da mãe empurrando sobre o prato um carrinho vermelho, desses que encontramos de plástico ou ferro, dependendo da loja.

Esquecer a mesa ao lado é o meu desafio. Mas como cumpri-lo se para além do que é visível enxergo ali a possibilidade de outra dimensão? Então volto a observá-la, mesmo que timidamente. Há algo de triste, eu penso, como se a mudez repentina da mulher fosse um diálogo com anjos. Serão seus olhos, esses que daqui vejo pendurados no vazio, como se buscassem com ternura aquele que até ontem, ou ainda hoje de manhã cedinho, dormia ao seu lado?

E então algo cruza o ar. É um aviãozinho de papel que ela joga e pousa sobre a mesa. Meus pelos arrepiam-se. Não por medo, creio. Mas pela ausência aniquiladora do que desconheço... E se eu fosse até lá? – Que ideia estapafúrdia, essa minha!

O gelo em meu copo derreteu. O calor é intenso, não há vento. Sinto escorrer na testa uma gotícula de suor e enquanto me distraio apanhando um lenço para enxugá-la, a mulher se alonga, segura a taça, ergue-a num brinde e deixa ecoar no ambiente a gargalhada tensa, quase provocativa – o moleque do carrinho vermelho agarra num susto o brinquedo e esconde-o no bolso da bermuda: “Não olhe!”, diz a mãe.

Indiferente à etiqueta e ao temor, cedo. Cedo ao desejo de compreender aquela mulher, de penetrar em seu mundo, de descobrir se realmente o amor lhe surge alto, esguio, com olhos cor de seriguela e os lábios, pitanga.

Mas antes que eu possa fazê-lo ela paga a conta. E em seguida, a despeito dos olhares lançados pelos demais clientes, percorre o estreito espaço por entre as mesas do restaurante, arrastando, na mão direita, quem sabe o amor.

3 comentários:

Anônimo disse...

Uma crônica real e com um toque de ficção. Adoreiiii.
Esperarei a próxima quinta, rsrs
Bjos,
Marce

Anônimo disse...

Como me faz bem ler o que escreves. Nem imaginas quanto.
Grande abraço.

Eis os comentários deixados no site do LimBem intimista. Gostei
Comentário Enviado Por: Raysa Em: 11/12/2011


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Muito lindo
Comentário Enviado Por: Lorena Marques Em: 11/12/2011


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Vássia, tua escrita é como carícia na alma da gente
Comentário Enviado Por: Débora Mendes Em: 10/12/2011


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Delícia de crônica
Comentário Enviado Por: Tatiana Em: 10/12/2011


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Uma escrita de alma
Comentário Enviado Por: Jovita Leal Em: 10/12/2011


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Só vejo belezas, Larissa.
Adoro as crôniccas da menina Vássia.
Comentário Enviado Por: LEILA JALUL Em: 10/12/2011


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Uma crônica linda, na linha dos escritores russos. O nome da autora, se não me engano, é russo.
Comentário Enviado Por: william porto Em: 10/12/2011


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Uma crônica de angústia e beleza serena
Comentário Enviado Por: Larissa Dias Em: 10/12/2011


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Vássia: Parabéns! Enxuto e bonito.
Comentário Enviado Por: Carlos Antonio Em: 10/12/2011


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Cara Vássia, belo texto
Comentário Enviado Por: José Alcestes Em: 10/12/2011


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a Coelho

Anônimo disse...

a anônima, sabes, sou eu
Leila Jalul