quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

A última taça

Salvador Dalí

Para ler ouvindo Billie Holiday

E então quase me apaixono por ele. Mas ando ressabiada com essas coisas, tanto que o espírito revestiu-se de uma pele outra e a exemplo dos crocodilos, deixou-se cobrir por placas córneas duras, o que facilitou sua permanência mesmo em situações gélidas, ásperas ou silenciosas.

Confessado isto, faço a correção: não é exatamente que meu espírito esteja entre os homens. Diria que parte, sim. Embora me ressinta o fato de que mais da metade do que antes era apenas entrega, encontra-se recolhida em paragens distantes no tempo, no espaço. Em um corpo menos sofrido, colado, provavelmente, a uma espinha dorsal que guarda o frescor do caule de onde pende um botão.

Ainda assim, não há razão para tristeza. Há que se aprender que entre uma perda e outra, os vãos alargam-se, modificam-se, abrem caminhos até então inimagináveis. É como sucumbir a um sonho ruim para ao final descobrir que da queda resta o chão fofo da praia. Inóspita, mas íntegra em toda a sua selvagem beleza.

Agarro-me, pois, a esta integridade. E vou arrastando os passos em uma estrada onde é possível avistar pequenas violetas, riachos, lâminas. Com elas, não me descuido. É que a pele aprendeu a prescindir a dor: para que hei de querer reviver os flancos abertos? Por isso as contorno docilmente, sem alarde, sem sustos.

Faço o mesmo com tuas íris esquivas. E porque já não me perturba a ausência estampada na pupila dos teus olhos castanhos, me permito brincar em outros mundos, ainda que sempre me tragam de volta as fotografias, o som e o cheiro de avelã dos anjos.

Então eu fico. Assim também minhas mãos, as quais jamais eu permiti o engano de deixar vazias, sem vida. Do contrário, como poderia inquietar-me?

2 comentários:

Almanacre disse...

Gostei muito! E como me apraz essa atividade das mãos na busca incesssante, eterna, de uma liberdade sempre possivel, que renova a vida.
bj
Pai

Anônimo disse...

Querida Vássia, que linda crônica
Comentário Enviado Por: Hilda Canário Em: 01/2/2012


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A gente percebe que Leila Jalul baba pela Vássia, um sentimento muito bonito de quem a viu crescer, com certeza
Comentário Enviado Por: José Ribamar Em: 31/1/2012


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Blz de crônica
Comentário Enviado Por: Wanice Em: 31/1/2012


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Linda crônica! Cada palavra, cada pensamento de Vássia, expressam verdade. Ela é assim.
Comentário Enviado Por: Leila Jalul Em: 31/1/2012


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Matou a pau a nostalgia
Comentário Enviado Por: Graciete Lobão Em: 30/1/2012


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Billie e Uves Montant. Vássia é uma cronista fantástica.



Comentário Enviado Por: william porto Em: 30/1/2012


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Muito linda, linda. Doce. Triste
Comentário Enviado Por: Márcia Lopes Em: 30/1/2012


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Nostálgica, mas bela
Comentário Enviado Por: Rosa Amélia Em: 30/1/2012

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LEILA JALUL