quinta-feira, 26 de junho de 2014

Da arte de lanhar joelhos

Robert Doisneau

Infância. Guardo imagens imprecisas da minha e quando quero lembrar o riso, recorro à memória alheia. Falam-me, então, do par de olhos interrogando o mundo. Eu só enxergo o vestido de bolinhas.

Mentira! Acabei de vê-la com os pés descalços, correndo atrás de uma pipa que riscava o céu para cair no telhado da vizinha. E ela escala o muro, alcança a beirada do barro que cobre a casa e se estica até tocar no último papel de seda da rabiola. Lá embaixo, a molecada vibra: Vai, Vássia!

A verdade é que cedo descobri que brincar de boneca era coisa muito sem graça. A rua, com os meninos empinando pipa e jogando bola, peteca, queimada era muito mais interessante! Sim, eu gostava da rua. E de me perder nas horas enquanto lanhava os joelhos, afundava os pés em barro ou poeira e deixava sob as unhas antes limpas, um risco de sujeira.

Claro está que o gosto pela liberdade cobra preço mesmo a crianças: não eram todas as mães que achavam confiável ter, em mim, uma amiga para as filhas. Oras, e o que importava? Eu não sabia manejar uma boneca com a mesma eficiência que ganhava as bolinhas de gude ou as figurinhas no bafo. E, para isso, não me faltavam os filhos.

Ah, como era bom ganhar dos meninos! Vê-los irritados com a perda progressiva de seus domínios...

Cresci, portanto, em meio a eles. E a cicatriz que tenho no corpo foi graças a uma aposta: pular uma rampa de três metros com a bicicleta do meu irmão mais novo. Pulei. Foi um pulo bonito, tanto que só minutos depois senti algo escorrendo na perna e uma fisgada atrás do joelho. O pedal da bicicleta, cravado de pontas, tinha entrado na carne e feito um buraco.

Fui mancando para casa, o sangue escorrendo e as lágrimas também.

Outra vez, a única que eu me lembre, me meti em uma briga feia. Dessas que você resolve no braço e depois se arrepende. A menina em questão foi parar na lata de lixo – aquelas antigas, que pareciam um tambor de ferro. Eu a joguei ali e me arrependi em seguida. Não que me preocupasse o fato de ela ter um irmão mais velho. Nada disso. O arrependimento foi pela humilhação causada aquela que era, sem dúvida, uma parceira de rua.

Até os 14 anos, felizmente, eu não tinha hora para entrar em casa. Com os pais trabalhando fora era fácil manter o relógio largo e a única razão para me recolher cedo era a fome. Fora isso, o dia era comprido, comprido... E o bairro, um verdadeiro parque de diversões.

Lembro que por esta época eu mal chegava da escola, trocava de roupa e ia encontrar a turma na frente da Loja Maçônica (que vivia fechada, claro, salvo as noites de reunião). As brincadeiras variavam com o humor e iam desde a singela “pera, uva ou maçã” até as corridas de patins, com direito à carona na traseira dos ônibus. De noite gostávamos de brincar de esconde-esconde, tocar a campainha das casas da rua de trás e sair correndo; colocar em xeque a coragem uns dos outros com as mais absurdas tarefas.

Era divertido. E teria sido por mais tempo se não surgissem, ali, os primeiros sustos do coração. Ô, coisa difícil lidar com isso! Ainda mais quando ele batia por companheiros de rua, sempre ao meu lado, tão solícitos.

Soubesse eu que com o tempo os sustos ganhariam dimensões maiores, talvez tivesse aproveitado mais a ingênua felicidade dos banhos de chuva e do beijo rápido: uva, uva, uva. Ah, infância!

2 comentários:

Jalul disse...

Vássia, querida, teus olhos tinham um ar de indagação. Lembro deles na tua infância. Às vezes, não raras, pareciam os de Capitu. Pensei de ti a timidez feito menina. Mas que nada! Eras o cão chupando manga!
Na memória embaralhada tentei também lembrar em quais outras casas moraste antes da João Donato. Na Akexandre Farhat, por acaso? Vizinha do Arquilau?
Nada importa. Se foste criança de joelhos lanhados, nada importa.
Beijos

Vássia Silveira disse...

Então, Leila... Lembro dos amigos dos pais, como você, que felizmente hoje são meus também (alguns até mais meus agora haha)dizendo desses olhos...Não sei se ainda os tenho, mas garanto que a curiosidade e as interrogações permanecem... E sim, tive (tenho) um espírito que mistura timidez com o diabo chupando manga!