quinta-feira, 3 de julho de 2014

Por um céu de colibri

Pablo Picasso

É domingo e chove. Sob a janela do quarto, as marias-sem-vergonha ficam contentes em sua vermelhidão. Gosto delas. Dão flor o ano inteiro sem regatear. 

Também gosto dos hibiscos. Vermelhos. E com a flor aberta, porque as que fazem biquinhos me dão a sensação de poema não escrito. Acho que os hibiscos não gostam de chuva: Noto que hoje eles não abriram suas flores. Mas carece de certeza essa observação.

Aqueço a alma tomando vinho. E entre um silêncio e outro da música (ando buscando uma que aquiete o coração) ouço o gotejar no forro: logo mais, a água procurará frestas e sabe deus por onde escorrerá desta vez!

Já desisti delas, as goteiras. Passei a vê-las como uma contingência e, desde então, movo-me na casa segundo suas vontades. Se molham o banheiro, enxugo-o; se caem sobre a mesa de trabalho, retiro os livros e anotações; se voltam a escorrer pela parede penso que no final do ano terei tempo para pintá-la com cal; e se resolvem molhar a cama, paciência, colchão nenhum foi feito para durar!

A vida ficou mais tranquila, desde então.

Mas o que incomoda mesmo é essa tristeza esparramada na tarde cinza e gotejante. Nada que a vista alcance está seco.  É como se a vida mesma estivesse pregada na chuva, lembrando que tudo é líquido. E transitório.

Tal constatação me faz olhar ainda mais para dentro. Há uma rachadura no peito, dessas que começam na base e vão ganhando força à medida que sobem. Olho-a agora. E penso que talvez fosse interessante pintá-la. Dar-lhe uma cor que estivesse à altura de sua pungência.

Mas a chuva me deixa preguiçosa. Vejo os pinceis e não tenho vontade de manejá-los.

O que eu queria mesmo era um céu de azul colibri. Não precisava estar quente, pois gosto do frio. Queria era ver e sentir esse azulzinho bom de céu bonito: minha alma, agora tão cansada, sabe o valor que tem um céu assim.

Andei vendo a previsão do tempo. Parece que terça-feira as coisas melhoram.

Ainda bem! Estou cansada de chorar junto com os passarinhos.

P.S. A crônica foi escrita em um domingo chuvoso. Felizmente há sempre uma noite entre um dia e outro: O céu azul apareceu já na segunda e segue colibri nesta quinta. 

5 comentários:

Jalul disse...

"Não sei que mistérios que as noites de chuva têm/ que fazem aumentar a saudade que a gente sente de alguém" Não lembro o autor.
Maninha, se tua crônica reflete os flagrantes da vida real, precisas urgentemente de um céu azul de colibri. Conheço bem a situação de colocar bacias, latinhas, panelas e panos (além de arrastar móveis) para poder respirar em paz.
Uma vez, de pirraça, amanheci ensopada. Nem isso esfriou minha cabeça.
Tenho outra triste lembrança de goteiras. Dessa não quero falar.
Espero que teu pé esteja melhorzinho.
Beijos

Vássia Silveira disse...

Menina, eu já desisti de brigar com as goteiras! Elas me venceram, pelo menos até o momento em que eu possa (ou ache que vale a pena) trocar todo o telhado da casa!

Marilia Kubota disse...

Tem dias que só chove.

Lu disse...

Esta tua crônica, Vássia, me lembrou uma que li outro dia do Rubem Braga, "os sons de antigamente" em que ele conta de um relógio da casa que herdou de seus pais que além de se adiantar, badalava diferente da hora que marcava. Daí, ele diz "...há muito desanimei de querer as coisas deste mundo todas certinhas, e prefiro deixar que o velho relógio badale a seu bel-prazer." Sábia decisão!

Vássia Silveira disse...

Pois é, Luzinha...compactuo da mesma determinação do mestre: também "desanimei de querer coisas certinhas". Aliás, desconfio que já nasci assim!