quinta-feira, 17 de julho de 2014

Alma irmã

Procurando a autoria da foto

 *Para Leila Jalul

(Eu leria ouvindo "Nasci para bailar")                                                                                              
Minha querida: contradizendo os temores da autora da carta que me entregaste ontem, eu felizmente mantive o pescoço no lugar. Não posso dizer o mesmo da cabeça, e bem sabes a razão: foram tantas as histórias e voos empreendidos nas últimas bem vividas décadas!

Adorei seu licor de jabuticaba e os biscoitinhos de maisena... Ah, coisa dos deuses! Ambos, unidos a sua companhia despertaram em mim a antiga paixão pelo vinho: Mal cruzaste a porta da sala, açoitada pelo frio nos pés, abri uma garrafa e lancei-me na rede da varanda, taça na mão, Cartola na vitrola – eu não te contei? Consegui adquirir uma naquela lojinha de antiguidades lá da Rua do Senado. Uma maravilha!


Pois sabes que tomei coragem e implantei mesmo os dentes? Coisas da fome, querida. Sempre gostei de mastigar até cansar. Fiz isso com os amores, a vida, os desenganos... Por que seria diferente com a comida? Aliás, com tantos avanços na medicina, não vejo motivo para que resistas a fazer o mesmo: Com exceção deste frio nos pés, para o qual sabes que um bom par de meias de lã resolve, você está ótima!  

E sim, tenho um vinil da Tracy Chapman. Guardo-o ao lado de outro que resgatei de um sebo na Rua do Ouvidor:
Concerto para uma só voz, de Saint Preux. Memórias afetivas que consegui salvar do esquecimento, esse estranho chicote que  cedo feriu-me a carne. E que ao passar dos anos ganhou vida própria, de maneira que já não sei mais se o que lembro é fato ou pura ficção.

Ah, o tempo... Não sei quando ele deixou de urgir para mim... Afinal, não caminhamos, todos, para o mesmo e inevitável fim? Pois, então. Perdi a pressa. E sabes que medo eu nunca tive!

Preocupo-me apenas com as meninas – continuo vendo-as assim –, pois mesmo com tudo que eu e a vida as ensinamos ambas resistem à ideia de me ver partir sem choro. E olhe que para poupá-las de qualquer trabalho na hora da dor, já providenciei o pagamento e tudo o mais necessário à minha partida: o crematório e as cartas de despedida com o expresso desejo de que não me façam passar pelo vexame de um velório, que minhas cinzas sejam jogadas no mar e que toquem música boa na hora! Pois pretendo chegar, seja lá onde for, dançando.

Sobre a casinha de madeira que Anaís, tão cedo, planejou para mim: é perfeita. E você tem toda a razão, eu não poderia estar em lugar melhor do que ao lado dos que me amam incondicionalmente. Tenho cá, minhas manias, é verdade. Mas tanto ela, quanto Clara, netos e genros sabem disso. Então fica fácil ser quem sou e, ao mesmo tempo, deixar espaço para o amor tranquilo dessa senhora que se descobriu como uma pacata avó.

Claro está que para isso foi necessário criar alguns códigos: Quando quero estar só, o que é muito frequente, deixo estendida na varanda uma bandeira vermelha. No geral, todos respeitam – com exceção dos netos, para os quais o território da avó não é mais sagrado do que suas pequenas angústias e urgências. No entanto, para eles, há sempre o perdão. 


Pois sabes que ainda uso o xale vermelho que Leila me mandou? Sim, é aquele que viste no espaldar da poltrona. Uso-o, sobretudo, quando quero acordar os ventos de minha mãe Iansã. Pois ao contrário do que me disseste, ainda não consegui aquietar o espírito. Terei eu tempo para isso? 


Ao vê-la em seus 118 anos, tão lúcida e forte, imagino que sim. No entanto, nas conversas que tenho com meus botões, fica sempre a pergunta: Vou querer aquietá-lo? 


A resposta, talvez, esteja nas tuas palavras mesmo. Pois quando me disseste que meus olhos continuavam misteriosos e falando de poesia, pensei cá comigo: é a inquietude que não me deixa. Sendo assim, se é verdade que nasci poeta, que eu morra como uma. 


Sinto que tenhas te demorado tão pouco aqui... Por que esperar o próximo ano? Não temos mais razão para fazer doer a saudade. Venha mês que vem visitar-me. Até lá providenciarei um aquecedor – resolvi também fazer uma lareira – e as meias de lã que encomendei para te presentear certamente terão chegado! 


Ah, traga o licor. E os biscoitinhos de nata com recheio de goiabada.


2 comentários:

Anônimo disse...

“Walking Around
Pablo Neruda


Acontece que me canso de meus pés e de minhas unhas,
do meu cabelo e até da minha sombra.
Acontece que me canso de ser homem.

Todavia, seria delicioso
assustar um notário com um lírio cortado
ou matar uma freira com um soco na orelha.
Seria belo
ir pelas ruas com uma faca verde
e aos gritos até morrer de frio.


Passeio calmamente, com olhos, com sapatos,
com fúria e esquecimento,
passo, atravesso escritórios e lojas ortopédicas,
e pátios onde há roupa pendurada num arame:
cuecas, toalhas e camisas que choram
lentas lágrimas sórdidas”.

Olá, querida alma/irmã

Gostaria de ter estado antes aqui no blog. Por razões que já conheces, não deu.
Busquei este poema de Neruda transcrito em um texto meu – ELEGIA AOS MEUS PÉS – escrito em 2011. Serve como pedido de desculpas pela ausência? Sendo de Neruda, acho que sim.
Veja, já coloquei o jenipapo em infusão, Usei álcool de cereais. Na nossa idade a pinga não é recomendável. Os biscoitinhos de nata e goiabada cascão (com muito queijo, depois café, cigarro e um beijo de uma mulata chamada Leonou ou Dagmar) farei de véspera. A té janeiro o licor estará curtidinho. Os biscoitos, por perecerem, farei na véspera. Janeiro não está tão longe.
Torça por mim e por ti. Deixe-me torcer por nós.
Beijos nas queridas Clara e Anaís, Um abraço apertado desta irmã que te ama “do vera”.
Até mais ver.

Vássia Silveira disse...

Abrir qualquer comentário com este poema, especificamente, é jogo baixo: Tá mais do que perdoada! Pois bote mesmo o jenipapo em infusão e avise as mãos amigas da cozinha que chego em janeiro com fome de biscoito de nata e goiabada cascão... Vixe, que janeiro vai ser festa!