quinta-feira, 10 de julho de 2014

Carta para você


Escrevo deitada em uma cama, com o pé engessado e um par de muletas encostado no criado-mudo. Por trás da madeira oca da porta, posso ouvir o barulho da televisão e do aparelho de som. O primeiro na sala, onde Nana se distrai assistindo a Fines e Ferbs; e o segundo vem do quarto de mamãe, que escuta pela milésima vez o CD de Tracy Chapman – não estou segura de que irás lembrar, mas tu também gostavas de ouvi-lo, repetidamente, na época em que morastes no Rio.

Por falar em morar: onde andas agora? Abristes, enfim, tuas asas a voos maiores? Ah, por favor, me diga que sim! Porque seria uma tristeza imaginar que você se rendeu aos planos de sua caçula e acabou em uma casinha de madeira – bem ao seu gosto, eu sei – no mesmo terreno onde ela vive com o marido e os filhos.

E, por favor, minha querida, não me interprete mal: eu também fiquei emocionada quando ouvi daquela pequena e linda boca os planos para o futuro. Mas, convenhamos: Essa história de viver como uma pacata avó não combina com você!

Por falar nisso, me diga: Aprendeste a fazer tricô? Eu espero que sim!

Não sei se irás recordar dessa história, mas por esses dias a Leila Jalul me escreveu um e-mail dizendo que tinha acabado de fazer um xale e uma boina para a Clara. E que iria comprar mais linha para produzir outras peças para mim e Anaís.

Por qual razão? Ora, porque ela não está podendo escrever e, segundo suas palavras, o tricotar é um remédio para “não cortar fora o pescoço”.

Daí que resolvi ser curta e grossa com você: Oxalá tenhas dedicado algum tempo para desenvolver esta ou outra habilidade qualquer, além da escrita – do contrário, duvido muito que ainda haja pescoço!

Sim, eu me preocupo com você. Por isso confesso: Esses dias andei pensando em uma forma confortável, e ao mesmo tempo dramática, de acabar com ele.

O resultado? Ah, nenhuma das alternativas que me veio à memória convenceu-me. Talvez tenha sido porque só consegui lembrar-me das tragédias – tipo encher os bolsos de pedra e lançar-se no rio ou colocar a cabeça no forno e ligar o gás – e diante delas, nenhuma outra forma de tirar o pescoço parecia digna.

Você, por acaso, encontrou alguma? Claro, se encontrou não poderás me responder.

O que significa, portanto, que esta carta não chegou ao seu destinatário...

É uma pena, Vássia! Porque com todos os desesperos e angústias ferindo a alma, eu sempre imaginei que você pudesse lê-la hoje, em seu aniversário de 95 anos. 


2 comentários:

Jalul disse...

Oi, alma irmã, parabéns por esta data. Quem diria que ainda estaria viva, respirando razoavelmente bem aos 118 anos, só para comemorar os teus 95. plenos de saúde.
Trouxe um licor de jabuticaba e uns biscoitinhos de maisena com castanha que fiz para brindarmos este dia feliz. Fica aí que vou pegar os cálices e os guardanapos. Licores aquecem a alma, sabias? Os biscoitinhos, fiz por serem os únicos que dissolvem na boca. Faz tempo que não mastigo, apenas engulo. Vejo que teus dentes estão perfeitinhos. Implantados? Por certo!
Ponhamos a vida em dia. Temos muito do que conversar e o tempo urge. Toma aqui a carta que pensavas não mais receber. Nem mais tinhas esperança de. Tanto tempo passado... Não quero que leias agora. Deixes para fazê-lo ouvindo aquele velho CD do Tracy Chapman. Ainda está contigo?
Como estão belas a Anaís e a Clara. Duas senhoras que herdaram a parte boa da genética e da filosofia. Conhecendo-as como conheço agora, vi que são livres e lindas. Que bom que moras na casinha de madeira que tanto a caçula imaginava ser a morada da felicidade. E é. Vejo que é. Sinto que é. Depois dos voos maiores, aquietaste o espírito. E, se quiseres, me responde: depois dos voos altos, qual seria o melhor pouso, senão perto de quem nos ama sem condicionamentos e reservas? Nossos voos têm termo, Os meus, os teus, os nossos. Não precisamos cortar nossos pescoços quando cercadas de seres tão singelos e especiais. E nem posaste de avó pacata. A liberdade continua tua companheira. A minha, idem. Apenas nos moldamos a novas formas de viver. Neto, bisneto, genros e noras não falam alto na nossa presença e nem ditam regras aos nossos pensares.
Estás bem protegida e feliz. Teus olhos ainda são misteriosos e falam de poesia mesmo que não queiras. És poeta desde que nasceste e assim partiras.
Está na hora de voltar pra casa. Meus pés estão frios e quase não os sinto, Adormecem sempre que preciso deles. Vou-me agora para calçar os meiões de lã que Leila fez para mim. Tenho coleção deles. E por falar nisso, ainda tens as peças que ela te mandou? Vejo um xale vermelho ali no espaldar da poltrona. Será o que ela fez.
Até outro dia. Depois desse monólogo, com certeza, precisas descansar,
Muitos anos de vida para ti. Ano que vem estaremos aqui nesta mesinha, derrubando alguns cálices de licor. Desta vez será de jenipapo. Os biscoitinhos podem ser de nata com recheio de goiabada?
Já estou com saudades.

Vássia Silveira disse...

Leila, minha querida: a essa altura já sabes o que rendeu teu comentário... quantas cartas mais poderíamos escrever uma a outra? Que venha a velhice!