quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Será um jazz?

Pablo Picasso

Eis que meus olhos repousaram no balanço da moça no terminal.

Estava eu, então, na fila do ônibus. À noite, sobretudo quando passa das 9h, é solitário esperar. Nessas ocasiões, tenho invariavelmente dois caminhos: ater-me ao que me rodeia ou arrastar a alma e os pensamentos em paragens distantes – o que eu provavelmente teria feito, não fosse a imagem daquele corpo que dançava a despeito do vento, da chuva e do frio.

Que música estaria escutando? A pergunta, por si só, diz pouco da imagem que vi crescer à medida que eu observava a figura sentada na beira do extenso banco de cimento. Tinha os cabelos longos, com pontas douradas e fios que se espalhavam pelos ombros, braços e costas. O casaco, um moletom azul, dizia pouco das formas. E ainda assim, me foi possível imaginar a languidez de um corpo que se mostrava entregue à breve alegria de uma canção.

O primeiro ímpeto foi de aproximar-me e perguntar-lhe o que escutava. Mas felizmente me contive – porque há coisas neste mundo cuja beleza reside exatamente na imprecisão. Feito isso, pude deixar-me vagar nas nuances daquilo que eu já não via senão como uma pintura.

Há alguns metros de distância da moça, um rapaz. Também com fones no ouvido. Mas a julgar por sua expressão, a música lhe inspirava melancolia, abandono, tristeza ou outro desses sentimentos que fazem com que o nosso olhar se assemelhe à névoa – que diferença entre um e outro!

Em pé, a dois passos de mim, um homem, um casal e uma senhora com sacolas. Não pude ver seus rostos. E como os corpos não demonstravam outra coisa senão rigidez ou cansaço, achei por bem voltar ao centro irradiador daquela canção que eu não ouvia, mas que o espírito pressentia graças à musicalidade nos movimentos da moça.

E lá estava ela, agora cantarolando algo. Deixei-me, a despeito da possível indiscrição, olhá-la. Dava gosto ver aquela leveza, o balanço dos ombros, a cabeça meneando sei lá se ao som de um jazz, um blues, um rock?

Percorro poucos metros mais e me deparo com o rapaz perdido em névoas. Para minha surpresa, ele agora também mexe o corpo, ainda que timidamente. E seus olhos, quero crer que contaminados pela mesma música, pareciam iluminados.

Que febre pode ser maior do que a alegria de um instante?

Sinto, então, uma vontade imensa de abraçá-los (e de agradecer-lhes por esse afago que segue impresso na alma, com uma força tão grande quanto a que experimento ao deixar-me entrar em um quadro que amo).

Mas o pensamento me distrai. A fila do ônibus anda. E quando dou por mim, a beira do extenso banco de cimento está vazia.

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