Cena do filme Dr. Mabuse, o jogador, de Frtiz Lang
Acho que foi Rubem Alves quem disse
que há dois tipos de casamentos: aqueles onde o casal joga tênis e os que se divertem
com o frescobol. Lembrei-me de sua crônica esses dias. E não exatamente porque
tenho pensado ou queira falar sobre casamentos – até porque, a julgar pelos que
colecionei e tendo em vista o que pensa o Rubem a respeito, eu seria uma exímia
tenista – mas por uma súbita necessidade de refletir sobre o jogador.
Dizem as más línguas que alguns
tios distantes – e quando digo distante me refiro a irmãos de minha avó
materna, portanto, tios de minha mãe – dilapidaram na mesa do jogo não só as
fazendas, mas também a dignidade herdada por bisavós que não conheci. A
história, contada em ocasiões raras na família envergonhada, me atraía desde os
tempos de menina. Não o desfecho em si, mas o fato de saber que antes dele
havia a miséria a qual foi relegada minha avó após ser deserdada por haver
escolhido casar com alguém que não era o primo prometido e arranjado.
Mas confesso que com o tempo, e
somente depois de ter escutado muitos e muitos “causos” onde minha mãe
experimentava na pele o desprezo dos avós ricos, senti certo regozijo ao
imaginar o fim daqueles que antes a maltratavam: o casarão antigo tinha dado
lugar a uma tapera de chão batido, onde dormitavam moscas e ossos tristes em
redes.
Tudo, tudo deixado em alguma mesa
de jogo, entre guimbas e garrafas vazias. O bisavô, homem duro e tão cheio de
caráter, escapou de ver esse fim. Mas a vozinha – é assim que aprendi a chamá-la,
mesmo sem nunca ter dela visto nem sequer uma fotografia – não teve a mesma
sorte e deu seu último suspiro, quase aos 100 anos, sob o peso da derrota, da
pobreza e da fraqueza dos filhos homens que ela mesma tinha parido e criado.
Bem mais tarde, deparei-me com o
jogador de Dostoievski. No corpo de então, as memórias eram outras e nada tinham
a ver com a infância de minha mãe, o castigo de minha avó ou as alegrias e agruras
da distante família latifundiária – aquela cujo destino acabou sendo decidido
no pôquer. Era de mim, que falavam. E era em mim que doía Alexei Ivanovitch!
Doía porque descobri ter certa atração por essa paixão feroz que consome àqueles que se sujeitam a deixar que a sorte os diga da vitória (ou da derrota). Doía porque eu já havia experimentado deixar na mesa minhas esperanças, alegrias e sonhos – ou toda a minha riqueza.
Fui, então, e por muitos anos, um Alexei Ivanovitch do amor. Com uma atração medonha em entregar nas mãos de outros jogadores, sempre mais hábeis do que eu, minha credulidade. O que significa não somente rasgar a roupa e mostrar-se nua, mas, sobretudo, abrir a porta da alma e deixar que olhos indignos espiassem os fantasmas.
Ah, e tantas eu fiz! E quantas noites eu chorei as migalhas que sobraram nos bolsos dilapidados por esses jogadores! Isso até o dia em que me dei conta de que não havia nascido para dividir minha solidão com aqueles que de tão tristes, precisam jogar para experimentar o que é estar vivo. E que se alimentam da voz do outro; dos sonhos do outro; das memórias do outro; dos desejos do outro; dos olhos e da alma do outro. E depois, entre as quatro paredes que os abrigam, sentem-se vazios – mesmo trazendo nas mãos os pedaços do outro.
Verdade é que às vezes ainda me deixo ficar como brinquedo de um jogador. Mas só o tempo necessário para me fazer recordar o quanto vale o que sou e o que tenho na essência. Ou, quem sabe, para reviver o regozijo daquela velha história de família, sobretudo o seu final.
É torpe esta confissão, eu sei. Mas isso apenas do ponto de vista cristão – porque do fundo das fraquezas humanas, é doce ver a derrocada daqueles que, um dia, foram nossos carrascos.
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