terça-feira, 7 de abril de 2015

A vida é besta

Sebastião Salgado

* Para ler ouvindo Nina (ou Beatles)

“A vida é besta, minha filha. Cousa sem medida”. Os olhos dela fisgavam meus pensamentos sem que eu deles nada soubesse. Falávamos de coisas perdidas. Ela, um filho; dois, três, quatro contando com a pequenina que já veio ao mundo dizendo adeus.

Dor sem tamanho, imagino. Meu corpo expulsou um há pouco mais de oito anos. Vinha fadado ao silêncio, como bandeira de guerra fincada no final da batalha. E eu chorei. Mesmo sabendo que não o queria. Que não havia, naquele amor que premeditava o adeus, espaço. Sábio é o corpo de uma mulher.

Estávamos no meio do terreiro. Do outro lado a vista alcançava o rio e suas cobras, e seus peixes, e suas iaras. E ela ali, de cócoras, mascando um fumo forte, as veias das mãos esculpindo memórias indisfarçáveis, as rugas como sulcos de uma vida inteira destinada a terra. Quis dizer-lhe dos flancos que deixei nas casas dos homens. Mas não julguei conveniente.

Então um manto de mudez nos cobriu. E eu sabia que sob ele ambas lutavam para não sucumbir às turvas águas que aprendemos a disfarçar na docilidade dos olhos. Preguei minha retina na dela e fui descendo o olhar pela face que não estava mais ali, senão como uma estátua de cera. Inútil tentativa de me deixar ficar. De resistir ao inferno que abria suas portas para mim e que logo me deixaria nua, como os pequenos barcos e as plantas rasteiras que não resistem à força da pororoca.

Meus diários. Minhas fotografias de infância. Minhas cartas. Meus primeiros livros. Minhas pinturas. Meus bilhetes – e tudo o mais que poderia dizer do que eu fui – deixados em uma casa amarela para a qual jamais retornei. Aquela casa que, na inocência do amor, ajudei a erigir. Tijolo por tijolo. E depois a hera, que subiria pela chaminé externa; e as hortênsias marcando o caminho que bem poderia levar aos céus.

Mas ah, como podem ser breves e inesperados os amores!

Mais tarde julguei que pagaria minha dívida ao permitir a divisão de outro corpo amado – e foram tantas as camas, tantos os pisos sujos de álcool que perdoei! Depois, como que sabendo ser somente meu o caminho, deixei crescerem as ancas, os seios fartos de leite, o ventre aberto e o choro final que até hoje parece dizer de mim.

(Ela permanecia quase imóvel, não fosse o fumo que mascava: “Me salve”, quis dizer-lhe)

Aos 32 anos, ou um pouco antes, a vida cobrou-me novos juros, implacável como os bancos. E naqueles braços, naquele peito, naqueles olhos de maresia foram rasgados mais que flancos. Ali, sangrei até quase a morte. Ali ficaram a minha credulidade e a disposição de amar sem medida – não antes que eu ouvisse o grito daquela que morderia o bico dos meus seios como se avisasse: eis aqui a tua herança deste amor que, logo mais, te cobrirá de luto.

Ah, essa coisa chamada esperança... Vejo-a morrer lentamente, sempre ao lado de olhos obscuros, fugitivos. Um luto eterno que disfarço ao vibrar com o mar, o azul do céu, o canto dos pássaros, o verde das árvores, as flores do ipê, o brilho dos olhos de minhas pequenas.

Essas que compartem comigo a solidão e a força para seguir em frente. E que um dia sentirão, sem que eu nada possa fazer, sangrar também o coração.

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