quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Olhos de Macaco


Frida Kahlo

Não sei o que realmente matou o lagarto. Mas posso falar de toda sua aventura depois de morto – do momento em que foi encontrado estirado na estradinha de areia até o fogão de uma casa amiga.

O corpo chegou numa sacola grande e foi deixado em cima da mesa. “Adivinha o que é isso?”, perguntou o amigo que o tinha apanhado do chão. O outro, ao sentir a aspereza do rabo, achou ser um tatu.

“Era só o que faltava! Tatu não dá pra comer...”, ria ele depois contando o caso. Biólogo daqueles que ama o mato, as montanhas e a terra, Eduardo disse que não pensou duas vezes quando viu do que se tratava – “Um baita lagarto”, segundo ele – “Está Morto? Pois vamos comer!” E armado de facas mais outros apetrechos domésticos, começou a fazer o almoço. Primeiro lavou o réptil, separou os pedaços e limpou a carne. Depois cortou cebola, batata e temperos frescos.

O vizinho que tinha levado o animal ria ao ver o empenho do cozinheiro. E também imaginando a cena caso algum conhecido aparecesse ali. “Já pensou a Vássia, vendo isso?!” e o biólogo, grande amigo meu, ponderava: “Ela não ia achar nada demais, nem se espantar de um desses parar na panela”.

Eu não me espantaria. Mas confessei depois, ao ouvi-lo contar, que não estava certa de que teria coragem de comer a carne. Lembrei, então, da história do macaco. Eu devia ter uns nove ou dez anos, enfrentava a primeira separação de meus pais e estava passando férias no Amapá, estado onde viviam amigos da juventude de meu pai e grande parte de sua família – incluindo minha avó que até então, eu não conhecia.

Ali fizemos muitos passeios. Um deles foi em um terreno que ficava afastado da cidade, cercado pela floresta. Guardo diferentes imagens deste lugar, mas nenhuma tão marcante quanto à do macaco que brincava nas árvores, próximo ao lago.

Custa-me agora saber quem estava com o rifle para caçar, mas tenho a vaga impressão de que talvez fosse o dono da casa. O fato é que ouvi alguém falar que o “macaco estava no papo” e estremeci ao imaginar o pequeno animal morto. Tinha vontade de gritar para afugentá-lo, mas sentimentos contraditórios me emudeceram.

Horas depois, sentados ao redor da mesa, os adultos riam. Riam de suas próprias histórias e também das incertezas, tolices ou medos que nós, quando crianças, manifestamos ingenuamente. E enquanto me esforçava para sorrir, mostrando que não me importavam mais os olhos chorosos do macaco no galho das árvores, deixava que servissem meu prato. Sentia o cheiro da comida caseira entrando em minhas narinas e aquecendo o estômago vazio. Ah, que delícia: feijão quentinho, temperado com alho e cebola; arroz com colorau; farinha d´água e aquela carne miúda, ensopada em uma mistura de óleo, molho e macaxeira.

Depois de um dia inteiro de caminhadas e brincadeiras, era bom estar sentada em frente àquele prato. E sem me incomodar mais com a troça dos adultos e a história do macaco, comecei a comer. Comia como se não houvesse tomado café ou jantado na noite anterior. Como se a fome estivesse grudada em mim desde a existência.

E quando estava nas últimas colheradas, alguém na mesa perguntou: “gostou da carne de macaco?” Ah, eu queria morrer! Ao lembrar do bicho pulando nas árvores e de seus olhos miúdos cruzando os meus, senti a comida revirar no estômago e por alguns instantes pensei que vomitaria tudo ali mesmo, em cima da mesa, do prato, na frente de todo o mundo.

A gargalhada foi geral. Os adultos, e agora também as outras crianças, divertiam-se com o final dado à aventura do macaco. Envergonhada e sentindo raiva de mim mesma por não ter forças para reagir ou dizer a todos da tristeza que me revirava o espírito desde o instante em que cruzei o olhar com o pobre animal, afastei o prato e sai da mesa.

Levantei-me com a comida queimando as entranhas. E sem saber, afinal, se havia ou não comido o pequeno macaco corri para longe da casa sentido-me torpe, suja e triste.

3 comentários:

Andréa Zílio disse...

Adoro essa sutileza em tua escrita. Essas palavras que nos levam à todas as histórias por ti contadas. Obrigada pelo cartão. Beijos e boas festas por aí!

Márcia Corrêa disse...

E o que o Elson fez nessa hora???

Lia Noronha disse...

Muito boa sua crônica...mostra a sua alma de escritora...Abraços