quinta-feira, 28 de maio de 2009

Delírios Noturnos


Gustav Klimt

Acompanho as sombras grudadas no chão, nas paredes, no teto que reflete a luz tíbia do poste vizinho. Sinto o tremor dos vidros na janela. O ar gelado vara as frestas, penetra minha pele e alcança os ossos, agora tão cansados. Sobre o telhado, a chuva fina e impaciente anuncia que a manhã chegará trazendo ainda mais frio. A casa toda é silêncio.

A madrugada avança e permaneço largada na cama, sem mão amiga para afastar do rosto os cabelos em desalinho. Uma sensação de abandono que vai amolecendo os músculos enquanto a memória busca, aflita, os cheiros e o calor da infância. Lembro-me do odor ácido do limão se desprendendo da panela, em meio a lascas de alho, e da minha mãe com a xícara de chá. Quero reter esta visão, prolongando sua aura de ternura. Mas a imagem se desvanece no ar, açoitada por um acesso ininterrupto de tosse.

Então corro para encontrá-la ainda mais longe, em pé e descalça no chão de cimento queimado. Vejo agora, em suas mãos, a polpa da jaca se desprendendo dos caroços e adivinho a cor escura do doce que logo ela irá servir. E ainda as folhas molhadas de sereno da erva-cidreira, do capim-limão, do mastruz que ela teima em bater com leite condensado, para acabar com os vermes.

Ouço sua voz chamando-me: “Vem tomar o remédio, filha”. E sigo-a em silêncio, já quase sentindo na boca o gosto amargo da copaíba misturado ao mel. Penso em dizer-lhe que sinto frio. Que meus membros tremem de dor e que a febre macula minha lucidez, atormentando-me com sombrias alucinações. Mas antes que eu pudesse tocá-la, os gatos da casa rasgam a quietude com seus gritos de cio e fome.

Sobressaltada, deixo rolar o corpo no colchão, afundo a cabeça nos travesseiros e experimento por alguns minutos a leveza de morrer.

Depois, já quase esquecida de minha fragilidade, caminho até a cozinha. E com os pensamentos ainda encharcados de desânimo, me deixo afogar na mistura de maleato de clorfenamina, paracetamol e cloridrato de fenilefrina. Esse líquido fumegante que me aquece a alma, anestesiando os sintomas desagradáveis do resfriado que insiste em me manter presa à cama e ao delírio.

P.S A crônica não é inédita (publiquei na minha antiga coluna do Mínimo Múltiplo, em 2008), mas a gripe sim.

2 comentários:

Andréa Zílio disse...

Adorei!
Nesses momentos sentimos tantas saudades do colo, do carinho e da denguice. bjs!

Márcia Corrêa disse...

Você tem a capacidade de comover, Vássia. Nada é tão simples, nem um simples resfriado. Bjs!