quinta-feira, 1 de abril de 2010

As botas

Marina Drasnin Gilboa

O riso da menina cruza o sereno, mistura-se ao som da bola arranhando as pedras e chega aos meus ouvidos como um chamado: o barulho lá fora me distrai.

Antes dele, eu me encontrava prestes a abrir a porta. A entrar nesse lugar, às vezes tão sombrio, no qual é impossível distinguir a forma, o nome, o cheiro original das coisas. É lá que crescem os medos, dormitam as fúrias, vivem os fantasmas.

Quantas misérias sem rosto foram enterradas nesse quarto escuro? Não arrisco responder e sinto o frio percorrer a espinha ao imaginar, embaixo dos tapetes molhados pela chuva, o pó. Essa poeira que a vida vai lançando em minha cara, fazendo-a grudar nos fios de cabelo, nas vestes, nos pés.

“Traz a bota, nêga”. Alcanço a frase na prateleira do canto, na parte mais alta, fria e solitária do quarto. Relembro a história por trás do pedido e à medida que vou construindo a cena, sou tomada por uma profunda tristeza, um sentimento de vazio que arranca de minhas entranhas um suspiro.

Estamos no começo da década de 70, em uma rua de um bairro afastado qualquer de Belém, terra das mangueiras. São 2 horas da manhã, mas as luzes na pequena casa continuam acesas. O lugar serve de ponto de encontro para jovens comunistas e revolucionários que, em meio à ditadura do governo Médici, discutem Marx enquanto esvaziam garrafas de cerveja e cachaça.

“Traz a bota, nêga, vou embora pro Chile” era a senha que informava sobre as angústias de um jovem idealista, assombrado pela ditadura militar no Brasil e a saudade dos amigos exilados. Uma espécie de desabafo seguido sempre pela mesma imagem – a de meu pai, olhos cheios de lágrima e voz embargada, caminhando com passos firmes em direção à rua, quem sabe, sem olhar para trás.

Nesses momentos, segundo minha mãe, socorriam os companheiros – entre eles o Del, que saía correndo atrás de meu pai, segurando-o e impedindo-o de seguir a caminhada solitária em direção ao Chile.

Esta história da infância, que tantas vezes divertiu os amigos na família, me enche hoje de melancolia. Talvez por saber que, a cada ano, os traços daqueles que um dia reconheci como meus pais vão se perdendo no turbilhão das coisas novas. Se transformando em imagens tão distantes que chego a ouvir, na orfandade, o eco surdo das pisadas se afastando lenta, mas decisivamente.

Busco, em vão, resgatar o espírito para lançá-lo novamente no mundo visível, povoado por grilos, sapos e ruídos de asas que desconheço. Porque sei que nada, neste lugar que acabo de entrar, é confiável.

Mas ainda assim, caminho. Caminho como quem não pode mais voltar. Como se houvesse calçado as botas e, sem amigos para me segurar, me aventurasse madrugada afora em busca daquilo que me foi tirado.