quinta-feira, 22 de abril de 2010

Cinza chumbo


O céu paulistano invade minha retina e alma. Gosto desse cinza chumbo e dos riscos azulados que vejo entre as nuvens, através da vidraça. Das janelas anônimas, das cortinas de escritório, persianas verdes, beges, brancas. Dos vasos de plástico pendurados no beiral de algumas sacadas, e dos varais coloridos com meias, toucas, saias, camisas. Gosto da tinta descascada na fachada do grande prédio, das caixas d´água e antenas nos terraços. E ainda dos pombos arrulhando no prédio vizinho.

Posso adivinhar, lá em baixo, a Paulista – e todas as suas esquinas, vitrines, turba. O cheiro da garoa no asfalto, o barulho da britadeira, das buzinas, da sirene de ambulância. Os skates furando as calçadas, os catadores juntando latas, os malabares nos sinais, os sem-teto cochilando sob as marquises. E os vendedores de frutas, balas, biscoitos, água.

Aqui em cima, as paredes estão nuas de lembranças. O cheiro de hortelã com amora ficou para trás, fundindo-se, na memória olfativa, ao da maresia. Há uma leve fragrância de jasmim e álcool na mesa, na bancada da cozinha americana, na louça do banheiro. Cor de terra, o carpete do piso promete aquecer. Tiro as sandálias e roço vagarosamente os pés sobre o chão, dobrando em ponta os dedos.

Na parede da outra peça, a reprodução do Terraço do Café na Place Du Forum, Arles, à Noite, de Van Gogh, perturba o espírito. Sinto a tristeza da moldura em gesso carmim, com frisos levemente dourados ao redor do vidro, e me sinto invadir pela saudade – como se as pedras que calçavam a rua daquele café pudessem guardar um pouco de mim.

A poltrona me chama. Ouço a volúpia do convite ao mesmo tempo em que olho, sob a mesinha de canto, um cinzeiro. A alma parece dançar: ouço Piaf ou tudo não passa de imaginação? Arrepio. E sinto a falta dele.

Penso que poderia, nesse instante mesmo, devorá-lo inteiro. E me deixar levar pelas sensações de desejo, luxúria, fome, prazer, tudo ao mesmo tempo. Para depois, mais tranquilamente, descobrir na calma os segredos dos sussurros, do silêncio, de olhares que se encontram e se perdem ao longo da vida.

E então me aninhar nas boas lembranças. Ou mergulhar, sem medo, no abismo das promessas ficcionais: deixar que me contem, as personagens, suas histórias.

Largo de lado a bolsa, me despindo em seguida. A sola dos pés roça a lã sintética. Volto o assento para a vidraça da janela e logo me deixo cair sobre a espuma macia. Ele me olha uma vez mais: sinto o frio percorrer a espinha e alcançar a extremidade das mãos. Mas ainda que minha alma brinde a liberdade pedindo agora um cigarro, não há o que fazer.

Fico, então, na poltrona. E quase esquecida da falta que ele, o cigarro, me faz, ergo os pés para a janela admirando esse céu-cinza-chumbo de São Paulo. E ao olhar a hora – são 2h30 da tarde – me dou conta de que não há solidão mais charmosa do que a das suítes de hotéis.

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