quinta-feira, 29 de abril de 2010

Janelas da memória

Encontrei-a no começo de uma manhã escura e fria de inverno. Era a primeira vez que a via aguardando o ônibus naquele horário.

Estudar faz bem, a gente abre as janelas da memória, fica mais inteligente! – ao soltar a frase, a mulher deixou no ar as mãos longas e o olhar fixou-se em um ponto misterioso do nada – Só agora pude estudar, com os filhos grandes e netos. Antes, não dava...

Noto, na interrupção da última sentença, uma melancolia carregada de lembranças. Ela deixa escapar um suspiro longo, arruma uma mecha do cabelo que cai sobre a testa, quase cobrindo seu olho esquerdo, puxa para cima a alça da bolsa verde que traz junto ao corpo, tosse, fecha um pouco mais o casaco bege e olhando por sobre meus ombros, continua.

Não é fácil criar filho sozinha, né? Eu tenho três. Agora é tudo já grande, moça e rapaz feitos. Mas, ah, só deus sabe o quanto sofri pra botar comida na mesa, dona. Fiz de tudo um pouco: fui lavadeira, arrumadeira, faxineira, cozinheira, vendedora, manicure, tudo. Não tinha vergonha, não. Porque vergonha, isso aprendi com meu pai, a gente tem que ter é de roubar, matar, essas coisas. Minha menina do meio não gostava muito. Quando cresceu um pouco, arrebitou o nariz e deu trabalho, viu? Tinha vergonha de dizer que a mãe era empregada doméstica...

Ela ri. Um riso que não consigo decifrar e que me invade o espírito com a calma translúcida de um hino. Os olhos dela marejam, sinto que ao redor da boca as finas linhas tremem. Seu silêncio me agonia. Em que lugar perdeu-se o fio da história?

Agora veja, dona, ela casou com um moço ótimo. É médico. Têm dinheiro, eles. Casa boa, carro, tudo do bom e do melhor. Eu não fui ao casamento, sabe? Ela tinha vergonha de mim, então achei melhor não ir. Inventei uma desculpa, cai doente no dia. Meu genro, coitado, ficou um trapo. Ele tem um coração de ouro, esse menino!

Os olhos parecem brilhar.

Dois netos. Eles me deram dois netos lindos, um menino e uma menina. Nas férias, a minha neta está sempre comigo: é diferente da mãe, puxou ao pai, acho. Gosta de ficar na cozinha ouvindo as histórias, fazendo pão, ariando panela, vai entender... O menino é novinho ainda, só anda de colo! Eu cuido deles nos finais de semana e também quando meu genro dá plantão.

Ela puxa para si a bolsa, como se agarrar o objeto e trazer-lhe junto ao peito lhe desse alguma proteção. A voz treme e ameaça não sair.

Não sei como vai ser, dona, quando minha filha for embora. Eu não lhe falei ainda, né, mas a mãe deles, a mesma que sempre teve vergonha de mim, está com câncer. Faz dois meses que descobriram. O tumor é grande, não dá pra operar, não tem remédio. É só esperar... Acredita nisso?

Seus olhos, finalmente, afastam-se do nada e encontram os meus.

Busco, inutilmente, uma palavra de consolo. Mas antes mesmo de encontrá-la percebo o quão insuficiente soará qualquer coisa que eu diga. Porque não é comigo que ela fala, senão consigo mesma – e neste caso, imagino, é necessário que a palavra consoladora brote de dentro de seu ser, de suas mais antigas lembranças, de seus mais dolorosos fantasmas.

Talvez de uma cena à mesa, junto ao pão suado e a infância dos filhos.

3 comentários:

Felipe disse...

¡Hermosilla!

Me quedo imaginando la escena. Que melancolía...

Un beso.

Cefas Carvalho disse...

Lindo texto, Vássia. Quero ler coisas assim "toda quinta". Beijo.

Márcia Corrêa disse...

Um abraço, um afago nos cabelos. Às vezes é sí isso que basta. Não há palavra suficiente para responder a algo assim, que não pareça de imediato precipitada. Lindo texto, Vássia. O mundo fica mais bonito quando enxergamos essas nuances.