quinta-feira, 7 de abril de 2011

A vida em Marte

Ibleo

Comecei a explorar Marte há exatos quinze dias. Há cabeleireiro, padaria, xérox, chaveiro, farmácia, boteco, galpão, casas, igreja, prédio e terrenos abandonados. Tem também mercearia, vendedores de peixe, mingau e bolo.

A vida em Marte é agitada. O dia começa cedo e o barulho é constante – um zum-zum-zum de veículos misturado a hinos, clamores, sirenes, assobios, risadas. Na boca da noite, aqui e acolá, a escuridão esconde a terra. Os grilos cantam, os sapos coaxam. E a vida segue com seus segredos.

Não é difícil viver em Marte. O duro é descobrir que pedestres não são bem-vindos: são raras as calçadas e muitos os buracos, carros, motos. Com os últimos é que ando disputando cada centímetro. Na maioria das vezes sou obrigada a parar e dar passagem; em outras, me atrevo a invadir o espaço na tentativa honesta de escapar de uma poça d´água ou desviar do mato em terrenos baldios.

Um exercício nada solitário, pois, apesar dos riscos, não sou a única transeunte. Por Marte caminham dezenas de crianças de todas as idades, velhos, velhas, trabalhadores, estudantes e corajosos ciclistas. Somos como uma turba que se separa ao ceder espaço às máquinas. E que se reúne, silenciosa e cabisbaixa, ao retomar o caminho.

“Outra vassoura, mãe!” – diz a menina que passa em direção contrária. Acompanho-a curiosa. E ao ver o dedo indicador da criança constato que aponta para um pedaço daquilo que outrora serviu para limpar o piso de alguma casa. “É por isso que gosto de andar nesta rua”, ouço-a dizer. Mas antes que eu possa apreender-lhe a explicação, os passos da pequena afastam-se de mim.

O que diria, afinal? Pensava nisso ao encontrar, alguns metros à frente, outra vassoura.

Sinto-me impelida a seguir olhando o chão de Marte. Vejo sacos, papéis, pedaços de paus, algumas latas. Um cachorro revira o lixo. Uma senhora varre a estreita e poeirenta calçada. Um homem acende o cigarro na varanda gradeada.

Venho com sacolas do mercado. E no trajeto, depois da menina, da vassoura, dos buracos, da sujeira, das cenas cotidianas e do ciclista que me avisa “O saco está rasgando!”, encontro um galho de buganvile caído no chão.

Passo por ele automaticamente. Mas ao notar o que acabara de fazer, paro e volto alguns passos. Deixo apoiada no solo a sacola para poder juntar o galho de onde pendem seis flores de cor rosa: “Há flores em Marte”, penso.

Pena que seja somente nos jardins gradeados de algumas casas.

5 comentários:

Gil Maulin disse...

inabitável... marte semelhança. e que trafega entre nossas parecências. marte se acopla. navega entre nós os marcianos desta terra com vários nomes. uranianos que também somos!

eduengler disse...

Lembro-me bem desta vida em Marte, ainda sinto seus cheiros, gostos e sons; todos atropelados pelo céu que caustica.

Vássia Silveira disse...

Gil, descontando o véu da ficcção, o problema dessa rua são os carros e a falta de calçadas para pedestres! Edu, você também morou na Rua Marte?

W. Marinho disse...

Vássia: "Mulheres são de Marte, Homens de Vênus" diz o titulo de um livro. Linda crônica. Um deleite para mim. Abs.

Carlos Baldner disse...

Marte evidencia descaso e desconsideração, o astronômico caos urbano martitiza seus habitantes. Lamentavelmente é um planeta em expansão, que há muito escureceu a Terra que conheci.Hoje 13 crianças foram brutalmente assassinadas no Rio. É..., nos resta o planeta vermelho (de vergonha e de sangue) Gostei muito da crônica. Um beijo grande..