Paulo A.
Ele vinha sem camisa, com boné na cabeça, bermuda colorida e uma bicicleta que o medo não deixou descobrir a cor: “E aí, gatinha? Passa o celular ou te dou um tiro na cara”. Arma mesmo, ninguém viu. Mas o susto, aliado ao trecho da rua sem iluminação, foi suficiente para que a menina de 13 anos entregasse na hora o aparelho.
O episódio me trouxe lembranças dos últimos anos no Instituto São José. Morávamos, eu e meus irmãos, na casa que meus pais construíram próximo ao Clube Juventus. Beco da Saudade. Era esse o nome da ruazinha, na época intransitável não fosse o carro da família um valente fusquinha bege.
Os mais novos estudavam pela manhã. Saíam cedo, é verdade, mas conseguiam pegar carona com pai. Eu, que nunca gostei de madrugar, estudava no período da tarde. Dormia um pouco mais e de quebra ainda dava uma força em casa quando as secretárias faltavam ou resolviam largar o emprego – “Não vá queimar o arroz, Vássia!”, dizia minha mãe nessas ocasiões.
Desvantagem mesmo eu só via na hora de sair pra escola, quando o horário da sesta colocava abaixo qualquer possibilidade de carona: restava-me o ônibus ou a caminhada. Em ambos os casos, era preciso vencer a lama em um trecho da Avenida Getúlio Vargas. Não dava dois quilômetros de estrada, mas o barro no inverno transformava o percurso em um longo caminho.
Precisava alcançar o asfalto sem sujar o sapato conga, a saia de tergal azul, a camisa branca. No começo, tentei saltar as poças e pisar firme neste ou naquele pedaço de chão. Mas a lama transformava o solado do tênis e eu chegava à escola como quem vinha de um ramal distante. O jeito foi enfiar os pés em sacos plásticos, amarrados na altura do tornozelo. Uma artimanha que funcionou bem até o dia em que escorreguei e cai estatelada na lama mole. A vergonha, aumentada pelos assovios da molecada que acompanhou a cena, me fez voltar para casa chorando.
Depois desse dia tomei uma decisão: ia descalça mesmo, carregando na bolsa os sapatos e meias limpas. Passada a ladeira e a lama, logo no começo do asfalto, havia um boteco que servia também de parada de ônibus. Ali, graças à generosa compreensão dos donos, eu lavava os pés, secava-os e enfiava meias e sapatos a tempo de subir na condução.
Na volta, a maior parte do caminho era aprazível. Fazia gosto cruzar a pé a lateral do Sesc, passar pelo burburinho da praça central, comer um salgado na Panilanche e depois subir e descer ladeiras enquanto pensava na vida.
Nesse horário, a lama não era meu maior problema – pois se caísse, estava quase em casa. O duro era suportar os meninos imitando o mugir das vacas e o pouso dos aviões da antiga VASP – Ah, como é difícil carregar um nome incomum! Mas eu seguia com a cabeça ereta. E a face dura desmentia todo e qualquer sentimento de fraqueza: Não daria a eles o gostinho de saber o quanto os gracejos me afetavam.
“Eu fiz certo, mãe?”.
A pergunta me resgata das lembranças. Despeço-me da menina de saia azul e conga. Quero tocar-lhe a face e dizer-lhe que tudo passa, mas à minha frente encontro os olhos assustados e o riso nervoso de duas outras pequenas. Respondo, então, disfarçando a tristeza em ver o quanto transformamos o tempo: “Sim, filha. Você fez certo em entregar o celular”.
O episódio me trouxe lembranças dos últimos anos no Instituto São José. Morávamos, eu e meus irmãos, na casa que meus pais construíram próximo ao Clube Juventus. Beco da Saudade. Era esse o nome da ruazinha, na época intransitável não fosse o carro da família um valente fusquinha bege.
Os mais novos estudavam pela manhã. Saíam cedo, é verdade, mas conseguiam pegar carona com pai. Eu, que nunca gostei de madrugar, estudava no período da tarde. Dormia um pouco mais e de quebra ainda dava uma força em casa quando as secretárias faltavam ou resolviam largar o emprego – “Não vá queimar o arroz, Vássia!”, dizia minha mãe nessas ocasiões.
Desvantagem mesmo eu só via na hora de sair pra escola, quando o horário da sesta colocava abaixo qualquer possibilidade de carona: restava-me o ônibus ou a caminhada. Em ambos os casos, era preciso vencer a lama em um trecho da Avenida Getúlio Vargas. Não dava dois quilômetros de estrada, mas o barro no inverno transformava o percurso em um longo caminho.
Precisava alcançar o asfalto sem sujar o sapato conga, a saia de tergal azul, a camisa branca. No começo, tentei saltar as poças e pisar firme neste ou naquele pedaço de chão. Mas a lama transformava o solado do tênis e eu chegava à escola como quem vinha de um ramal distante. O jeito foi enfiar os pés em sacos plásticos, amarrados na altura do tornozelo. Uma artimanha que funcionou bem até o dia em que escorreguei e cai estatelada na lama mole. A vergonha, aumentada pelos assovios da molecada que acompanhou a cena, me fez voltar para casa chorando.
Depois desse dia tomei uma decisão: ia descalça mesmo, carregando na bolsa os sapatos e meias limpas. Passada a ladeira e a lama, logo no começo do asfalto, havia um boteco que servia também de parada de ônibus. Ali, graças à generosa compreensão dos donos, eu lavava os pés, secava-os e enfiava meias e sapatos a tempo de subir na condução.
Na volta, a maior parte do caminho era aprazível. Fazia gosto cruzar a pé a lateral do Sesc, passar pelo burburinho da praça central, comer um salgado na Panilanche e depois subir e descer ladeiras enquanto pensava na vida.
Nesse horário, a lama não era meu maior problema – pois se caísse, estava quase em casa. O duro era suportar os meninos imitando o mugir das vacas e o pouso dos aviões da antiga VASP – Ah, como é difícil carregar um nome incomum! Mas eu seguia com a cabeça ereta. E a face dura desmentia todo e qualquer sentimento de fraqueza: Não daria a eles o gostinho de saber o quanto os gracejos me afetavam.
“Eu fiz certo, mãe?”.
A pergunta me resgata das lembranças. Despeço-me da menina de saia azul e conga. Quero tocar-lhe a face e dizer-lhe que tudo passa, mas à minha frente encontro os olhos assustados e o riso nervoso de duas outras pequenas. Respondo, então, disfarçando a tristeza em ver o quanto transformamos o tempo: “Sim, filha. Você fez certo em entregar o celular”.
5 comentários:
Belo texto, Vássia. Nostalgia e tom poético extraído de um ponto de partida tão cru, que é a violência urbana. E o título é um achado. Beijo e parabéns por mais este texto.
Realmente, belo texto! Nos remete a um tempo, saudoso mesmo, onde os problemas que tínhamos era circunscrito ao ambiente escolar e familiar ( nos desviar das poças d'água, nos aquecer do frio matinal, correr pra chegar em casa após a aula varada de fome)... A violência praticamente não nos afetava (acho que não éramos muito urbanos, rs). Triste mudança!
A educação não acompabhou o processo de desenvolvimento. E não só isso: os marginalizados foram mantidos marginalizados.
Resta-nos o medo e a preocupação com o futuro de nossos filhos e netos. E o nosso, também!
Olha, o Nelson Silveira, por acaso, era o chefe de redação e adorava holofotes!!! rs
PROCUREI E NÃO ACHEI O TODA QUINTA DE HOJE. PENSEI E DESCOBRI QUE, COMO A RODA RODA, QUINTA SÓ TERMINA ANTES DA MEIA NOITE DE SEXTA.
LOUVADOS SEJAM OS ANJOS! EU PENSO!
Vássia tomei conhecimento do seu blog hoje através da coluna da Jackie; ganhei o domingo, até meu banzo diminuiu; q textos deliciosos; quisera saber escrever assim, parabéns é a única palavra q me ocorre no momento p lhe dizer. Estou engatinhando neste mundo da internet e minha filha me fez um blog, diz q sempre q minha vida dá um livro, acho exagero, mas se vc tiver tempo e me der sua opinião será um imenso prazer. Adelaide Allbuquerque - www.linhadividida.blogspot.com - mas p favor n vá esperando grande coisa. sucesso
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