quinta-feira, 5 de maio de 2011

E aí, gatinha?

Paulo A.

Ele vinha sem camisa, com boné na cabeça, bermuda colorida e uma bicicleta que o medo não deixou descobrir a cor: “E aí, gatinha? Passa o celular ou te dou um tiro na cara”. Arma mesmo, ninguém viu. Mas o susto, aliado ao trecho da rua sem iluminação, foi suficiente para que a menina de 13 anos entregasse na hora o aparelho.

O episódio me trouxe lembranças dos últimos anos no Instituto São José. Morávamos, eu e meus irmãos, na casa que meus pais construíram próximo ao Clube Juventus. Beco da Saudade. Era esse o nome da ruazinha, na época intransitável não fosse o carro da família um valente fusquinha bege.

Os mais novos estudavam pela manhã. Saíam cedo, é verdade, mas conseguiam pegar carona com pai. Eu, que nunca gostei de madrugar, estudava no período da tarde. Dormia um pouco mais e de quebra ainda dava uma força em casa quando as secretárias faltavam ou resolviam largar o emprego – “Não vá queimar o arroz, Vássia!”, dizia minha mãe nessas ocasiões.

Desvantagem mesmo eu só via na hora de sair pra escola, quando o horário da sesta colocava abaixo qualquer possibilidade de carona: restava-me o ônibus ou a caminhada. Em ambos os casos, era preciso vencer a lama em um trecho da Avenida Getúlio Vargas. Não dava dois quilômetros de estrada, mas o barro no inverno transformava o percurso em um longo caminho.

Precisava alcançar o asfalto sem sujar o sapato conga, a saia de tergal azul, a camisa branca. No começo, tentei saltar as poças e pisar firme neste ou naquele pedaço de chão. Mas a lama transformava o solado do tênis e eu chegava à escola como quem vinha de um ramal distante. O jeito foi enfiar os pés em sacos plásticos, amarrados na altura do tornozelo. Uma artimanha que funcionou bem até o dia em que escorreguei e cai estatelada na lama mole. A vergonha, aumentada pelos assovios da molecada que acompanhou a cena, me fez voltar para casa chorando.

Depois desse dia tomei uma decisão: ia descalça mesmo, carregando na bolsa os sapatos e meias limpas. Passada a ladeira e a lama, logo no começo do asfalto, havia um boteco que servia também de parada de ônibus. Ali, graças à generosa compreensão dos donos, eu lavava os pés, secava-os e enfiava meias e sapatos a tempo de subir na condução.

Na volta, a maior parte do caminho era aprazível. Fazia gosto cruzar a pé a lateral do Sesc, passar pelo burburinho da praça central, comer um salgado na Panilanche e depois subir e descer ladeiras enquanto pensava na vida.

Nesse horário, a lama não era meu maior problema – pois se caísse, estava quase em casa. O duro era suportar os meninos imitando o mugir das vacas e o pouso dos aviões da antiga VASP – Ah, como é difícil carregar um nome incomum! Mas eu seguia com a cabeça ereta. E a face dura desmentia todo e qualquer sentimento de fraqueza: Não daria a eles o gostinho de saber o quanto os gracejos me afetavam.

“Eu fiz certo, mãe?”.

A pergunta me resgata das lembranças. Despeço-me da menina de saia azul e conga. Quero tocar-lhe a face e dizer-lhe que tudo passa, mas à minha frente encontro os olhos assustados e o riso nervoso de duas outras pequenas. Respondo, então, disfarçando a tristeza em ver o quanto transformamos o tempo: “Sim, filha. Você fez certo em entregar o celular”.

5 comentários:

Cefas Carvalho disse...

Belo texto, Vássia. Nostalgia e tom poético extraído de um ponto de partida tão cru, que é a violência urbana. E o título é um achado. Beijo e parabéns por mais este texto.

Lu Gomes disse...

Realmente, belo texto! Nos remete a um tempo, saudoso mesmo, onde os problemas que tínhamos era circunscrito ao ambiente escolar e familiar ( nos desviar das poças d'água, nos aquecer do frio matinal, correr pra chegar em casa após a aula varada de fome)... A violência praticamente não nos afetava (acho que não éramos muito urbanos, rs). Triste mudança!

Jalul disse...

A educação não acompabhou o processo de desenvolvimento. E não só isso: os marginalizados foram mantidos marginalizados.
Resta-nos o medo e a preocupação com o futuro de nossos filhos e netos. E o nosso, também!
Olha, o Nelson Silveira, por acaso, era o chefe de redação e adorava holofotes!!! rs

Jalul disse...

PROCUREI E NÃO ACHEI O TODA QUINTA DE HOJE. PENSEI E DESCOBRI QUE, COMO A RODA RODA, QUINTA SÓ TERMINA ANTES DA MEIA NOITE DE SEXTA.
LOUVADOS SEJAM OS ANJOS! EU PENSO!

Anonima disse...

Vássia tomei conhecimento do seu blog hoje através da coluna da Jackie; ganhei o domingo, até meu banzo diminuiu; q textos deliciosos; quisera saber escrever assim, parabéns é a única palavra q me ocorre no momento p lhe dizer. Estou engatinhando neste mundo da internet e minha filha me fez um blog, diz q sempre q minha vida dá um livro, acho exagero, mas se vc tiver tempo e me der sua opinião será um imenso prazer. Adelaide Allbuquerque - www.linhadividida.blogspot.com - mas p favor n vá esperando grande coisa. sucesso