quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Sobre caixas e espectros


Frida Khalo

E porque este domingo amanheceu cinzento, me pus a remexer caixas. Guardam coisas que há muito não me pertencem mais. São caligrafias distantes, rosas esmaecidas, folhas secas, fitas de todas as cores. Aqui e acolá uma asa de xícara, um botão de madeira, um ensaio de poesia rabiscado em guardanapos ou embalagens de cigarro: há nesta tarde uma fenda...

Nelas sempre encontro um trecho daquilo que bem poderia ter sido uma crônica de amor. Ou um poema em homenagem aos teus olhos. Dos quais eu não sei mais a cor ou o brilho. E vendo-os agora tão sem vida, despidos de qualquer lembrança que não seja a própria existência, presos numa folha de papel que seguro entre os dedos, sinto tristeza. Uma tristeza que não tem origem na saudade, mas na consciência do simulacro.

Então me dou conta de que não foi ontem o dia no qual reuni em envelopes cor de marfim os primeiros versos. Também aquela correspondência em cujas entrelinhas dormitavam, sem que eu soubesse, as feras. Coisas da inocência, quando nas linhas da palma da mão o destino mentia alegrias.

Agora estou aqui, arqueada sobre esse piso de terra. Observando sem grande expectativa a imagem circular dessa figura que transcende o espaço para grudar em minha retina. Terei um dia sido realmente esta menina de olhos vivos que me interroga do fundo do rio? Que emerge do barro e do receio a Iansã para fincar nas rugas a fome que deixei de sentir?

Quero agarrar suas pequenas mãos, estreitar-lhes no peito, e esse desejo trêmulo me faz descobrir que é tarde para fugir. Então começo, relutante e cheia de medo, a refazer o caminho largo da juventude. Pois é dele que falam esses arremedos de insônia, esses pequenos fantasmas que se puseram a dançar em círculos no instante em que resolvi abrir as caixas.

Quantas vozes, meu deus! Como riem, cantam, brincam esses espectros. Tão simples seus sonhos, suas palavras, seus desejos: um sorvete na praça, um passeio de bicicleta, um domingo sem chuva. E aquela boneca Susie exposta na última prateleira da grande loja de esquina.

Podia ter sido fácil a felicidade, eu penso. E quando quase alcanço o céu da amarelinha, tal reflexão me conduz novamente a este corpo tão repleto de concretude.

Não, não tenho forças para romper as geleiras que o tempo fez surgir ao redor da alma – Ah, e como custa ao coração desmentir seu cansaço, sua desesperança.

Então resolvo fechar as caixas. E desaprender a lembrança.

3 comentários:

Anônimo disse...

Vássia,
Teu texto já é esperado no site Lima Coelho.
Enquanto te leio, leio-me. É como se os caminhos que hoje percorres já tenham sido por mim percorridos. Já não tenho caixas.
Um grande beijo. Vou aguardar o exemplar do livro.
Leila Jalul

Anonima disse...

Ainda tenho muitas caixas e lembranças; abro-as aos poucos, senão o assombro deixa-me catatônica, quando terminar de abri-las, colocarei uma lápide. Beleza de texto, memorável. Adelaide Albuquerque

Anônimo disse...

Vássia, as meninas deixaram estes comentários no site do Lima Coelho. Veja:

Demais...
Comentário Enviado Por: Hilda Canário Em: 15/9/2011


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Muito cheia de sentimentos. Ficou linda
Comentário Enviado Por: Ernê Em: 15/9/2011


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Vássia, fiquei com inveja de não ter escrito a crônica. Na boa! rsrsrsrsr
Comentário Enviado Por: Melissa Costa Em: 15/9/2011


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Uma doçura de crônica
Comentário Enviado Por: Eline das Chagas Em: 15/9/2011


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melancólica, porém bonita
Comentário Enviado Por: Janaína Em: 15/9/2011


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Delícia de crônica
Comentário Enviado Por: Martha Vilarinhos Em: 15/9/2011


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Desaprenda não, Vássia, essas caixas são um tesouro, querida.
Comentário Enviado Por: william porto Em: 15/9/2011


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É verdade, Alice. Como escreve gostoso essa menina Vássia!
É musical.
Comentário Enviado Por: Leila Jalul Em: 15/9/2011


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Uma crônica bonita, de lembranças pessoais
Comentário Enviado Por: HH Em: 15/9/2011


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Uma escrita intimista e muito gostosa
Comentário Enviado Por: Alice Matos Em: 15/9/2011

Beijos e saudades.

Leila Jalul