quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Síndrome de Iago

 Hieronymus Bosch

Descobri, com um atraso de quase três meses, que a lista dos pecados capitais ganhou novos itens. Agora, além dos sete famigerados – gula, luxúria, avareza, ira, vaidade, inveja e preguiça –, os cristãos devem pedir perdão também pela manipulação genética, o uso de drogas, a desigualdade social e a poluição ambiental.

Confesso que a notícia me desconcertou. Não pela esperada postura do Vaticano em relação aos avanços da Ciência, nem tampouco por sua surpreendente preocupação ecológica e social. Mas pela ausência daquele que considero o principal ingrediente do pecado: a paixão.

Como pecadora contumaz de dois dos grandes pecados – a gula e a preguiça –, posso afirmar que não fosse ela, a paixão, eu não pecaria. Porque certamente não me chamariam a atenção os chocolates nem tampouco a cama esparramada no quarto, ou o sofá e a rede. Aliás, esta é uma dúvida que sempre tive: por que a gula e a preguiça são consideradas pecados? Acaso não sabia a Igreja o quanto é bom refestelar-se à mesa e depois descansar sem culpa?

Além da gula e da preguiça, acho que a luxúria tem seus encantos. É um pecado que, definitivamente, vale cometer pelo menos uma vez na vida. O mesmo não posso dizer da ira – mas que mãe ou pai está livre de experimentá-la? – e da avareza, pecadozinho sem-vergonha que nós, pobres, estamos praticamente isentos de cometer. Já a vaidade, na época em que vivemos, deveria ser banida de vez da lista dos pecados mortais. Do contrário, não sobrarão muitos para povoar o céu.

Resta, portanto, aquela que considero a mais funesta das paixões humanas: a inveja. É claro que não me refiro ao sentimento mesquinho, mas inofensivo, de cobiçar, por alguns instantes, o que não lhe pertence. Isso pode explicar o hábito de fazer uso da expressão “que inveja!” quando um amigo nos avisa que irá fazer um doutorado no exterior. Mas nunca, nunca os demônios que se enroscam na mente do invejoso. Nem tampouco as lanças sempre afiadas de seu olhar.

E engana-se quem acredita que esta pérfida senhora é companhia apenas daqueles que não possuem inteligência ou talento. Não se deixe iludir, leitor. Porque a inveja não escolhe cor, credo nem tampouco massa cinzenta. Como uma parasita, ela se aloja naquele que melhor puder alimentá-la. E segue devorando-lhe a alma e dilacerando-lhe a carne.

Infelizmente, e a literatura está cheia de exemplos, a inveja é uma paixão que se compraz com a desgraça do outro. E se na vida real é verdade que a maioria dos invejosos não chega ao extremo de matar aquele que é o objeto de seus desejos mais recônditos, também é certo que nunca, em hipótese alguma, lhe deseja o bem. Porque não há nada pior para este pecador do que a felicidade daquele que inveja. Por ele, o outro poderia morrer de câncer, perder a mulher (ou o marido), os filhos, a casa, o emprego. Toda a tragédia alheia é pouca para o invejoso.

Não bastasse isso, há ainda outra certeza em relação a tal indivíduo: ele procura estar sempre próximo ao seu objeto de desejo. Isso é tenebroso, realmente assustador. Porque como não desconfia do sombrio sentimento, e muito menos das vontades mórbidas do invejoso, o outro segue na inocência de um cordeiro no pasto. Sem imaginar, em nenhum momento, ser a razão da baba que escorre na boca do invejoso em seus piores pesadelos.

Não, não há desculpa para a inveja. Ela é, certamente, a essência do pecado.


*Esta crônica foi escrita e publicada, originalmente, na minha coluna no Mínimo Múltiplo. Apesar de ter sido em 2008, me parece sempre atual. 

2 comentários:

Anônimo disse...

Minha querida Vássia,

Esta tua crônica será sempre atual.
Eu digo que a inveja, quando acompanhada da vaidade, vira patologia.
Como doença ela assume graus altíssimos de malignidades.. Os acometidos por ela são indivíduos perversos, até.
Os invejosos/vaidosos (conheço muitos, principalmente no serviço público), bastam subir um degrau na escadaria do poder e logo esquecem suas origens, suas histórias, seus amigos e, até, suas ideologias. Esses são os mais perniciosos. O que emana deles é mortífero. Se o invejado não se cuidar vira torrão. Eles secam até pimenteiras.
Acredites, no entanto, numa certeza certa: eles são, além de doentes, profundamente infelizes.
Grande abraço para ti, filhas e para o desaparecido Elson e família.
Um 2012 de alegrias. Sem invejas, de preferência!!!! rs
Leila Jalul

Meritxell disse...

Querida Vássia,
posso te dizer que as suas crónicas me dão inveja?


Um 2012 cheio de felicidade!

Abraço desde a ilha,
Meritxell